O risco de desassistência médica no âmbito da saúde popular brasileira, resultante da postura inábil do presidente eleito, é muito grave por penalizar milhões de pessoas que têm se beneficiado nos últimos cinco anos com o programa Mais Médicos. Em reação a tantas e intempestivas declarações, o governo cubano resolveu suspender a ajuda humanitária que o país caribenho vem dando ao Brasil. São mais de 1.500 municípios brasileiros que contam exclusivamente com médicos cubanos nesse programa.
Mais da metade dos 16 mil profissionais que integram o Mais Médicos é cubana. No Ceará, eles estão trabalhando também em mais da metade dos municípios. É grave a situação de insuficiência de interessados em assumir uma medicina humanitária nas periferias urbanas e no interior do País, onde os acessos são difíceis e predominam baixos níveis econômicos. Tanto que existem atualmente cerca de duas mil vagas não preenchidas.
A aceitação para trabalhar em condições precárias, adversas e com poucos recursos tecnológicos e de medicamentos requer pessoas com o raro e admirável perfil dos médicos cubanos, com sua simplicidade no trato, sua sofisticada abnegação, e uma formação fundamentada no atendimento clínico e familiar, com ênfase na prevenção de doenças. Tudo isso foi validado pela Organização Pan-Americana de Saúde (Opas), a instância da Organização Mundial de Saúde (OMS) para as Américas.
Não é razoável, portanto, que o governante em vias de assumir o poder queira interferir nos assuntos internos do país parceiro. Brasil e Cuba são nações soberanas, com histórias e contextos políticos muito distintos. Nós temos médicos que perguntam se a consulta é com ou sem nota fiscal, e eles têm médicos que cedem parte da remuneração individual para o coletivo. Deveríamos tratar de resolver primeiro o nosso problema antes de nos metermos na cultura dos outros.
O maior problema que os médicos cubanos provocam ao corporativismo médico brasileiro é revelar que, por trás do grande negócio que se tornou a saúde, existem profissionais que ainda atuam por vocação e que honram o juramento de consagrar a vida ao humanismo, colocando a missão antes do dinheiro. Desde o início do programa em 2013 que isso vem perturbando setores da medicina e produzindo desconforto em todos aqueles que não gostam de ver desvalidos com benefícios.
A “canetada” que mandaria esses altruístas cubanos de volta estava anunciada, e Cuba, como qualquer país que tenha o mínimo de auto respeito, optou por se antecipar, comunicando, na quarta-feira passada, 14, o encerramento dos serviços essenciais de seguridade social que vinha prestando ao Brasil. Essa atitude de dignidade pôs em xeque os arroubos de uma liderança que parece ainda não ter percebido o tamanho da responsabilidade de quem assume o posto número um da República.
São várias as antinomias presentes nessa crise desnecessária. Uma delas é o choque entre o pensamento defensor da saúde pública e o que está a serviço do controle privado desse mercado multibilionário. Outra é o desencontro de propósitos entre a medicina preventiva e a indústria da doença. O embate entre o espírito humanista e o egoísmo social no mundo médico é outra contradição poderosa. E a mais picaresca de todas é a que ainda segue sustentada pelos extremismos da campanha eleitoral.