Maracatu cearense
Artigo publicado no Jornal O Povo, Caderno Vida & Arte, página 8
Terça-feira, 15 de Agosto de 2000 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Todas as vezes que me deparo com alguma manifestação do nosso maracatu, fico com um indescritível sentimento de negligência social. Não consigo imaginar como é que deixamos essa expressão de alegoria saudosa atravessar o tempo regurgitando, meio sozinha, a síntese de uma história lastreada no espetáculo das raças. O que me conforta é poder constatar que o tamanho da nossa apatia ainda não foi capaz de matar o ânimo dessa gente que insiste em manter vivo o simbolismo do espírito popular. Em contrapartida, as elites da atualidade parecem não alcançar sequer a compreensão dos déspotas coloniais, que chegavam a promover esse tipo de festejos encomendados, como forma de válvula de escape para os excluídos.
É certo que a igreja hoje não exerce mais o mesmo poder de influência nas decisões do poder. Essa tarefa vem sendo conduzida pelos estrategistas de marketing. A necessidade sutilmente percebida nos confessionários passou a ser identificada por pesquisas estatisticamente corretas. De tão pouco sabermos da nossa história e de tão pouco respeitarmos o que tem sobrado dela, dificilmente fenômenos como o maracatu aparecem como relevantes nas decisões oficiais e de mercado. Mas quando temos a oportunidade de nos depararmos com o séqüito de gala e batuque, entre negrumes de fuligem e brilhantina, somente os corações maculados por preconceitos não tiram loas ancestrais.
O maracatu cearense distingue-se dos demais praticados em outras regiões do país, por ser essencialmente um auto de louvação solidária aos escravos africanos que foram trazidos para os nossos parcos canaviais. Em memória dos reis negros, as pessoas pintam o rosto de preto e, com indumentária berrante, fazem a dança cadenciada de canto nostálgico, dando poesia ao banzo e significado à vida. Se considerarmos que o Ceará foi o primeiro estado brasileiro a libertar os escravos (25.03.1884) e que este fato, mais do que razões econômicas e políticas, ganhou sentido moral na índole resistente da gente nativa, praticamente exterminada por não aceitar o modelo cativo do colonizador, dá para crer neste motivo como rudimento espontâneo do ritual de inversão dessa simbiose cultural.
As festas de coroação dos Reis do Congo e Rainha de Angola atravessaram o Atlântico nas caravelas, como uma dádiva dos brancos. Marcado por repiques de sinos e toques de tambores, o culto à Nossa Senhora do Rosário foi simbolicamente entregue aos negros, na tentativa de manutenção da ordem. Ação de reconstituição social que, guardadas as proporções circunstanciais, alguns movimentos religiosos continuam praticando através de confrarias de afetividade para os contingentes de desempregados e despossuídos. No Brasil escravocrata, foi a inteligência missionária que cuidou desse teatro de rua, no qual muitos descendentes dos reis africanos fingiam ser reis por um dia. Criaram-se as irmandades negras assistenciais para, em compensação, haver a conquista de maior disciplina por parte dos escravos.
Folguedo vem de folga, descanso, divertimento e o reisado tem tudo isso. A sabedoria popular deu grandeza a essa encenação e foi adaptando seus valores com o tempo. Visto como uma mistura de sagrado e profano, os participantes do maracatu foram orientados a migrou da ritualística natalina para as festas carnavalescas. Com isso os brincantes perderam o empréstimo de jóias e adereços dos seus ex-donos, para ganhar o esplendor da liberdade entre miçangas e estandartes improvisados. A versão cearense dessa dança dramática afro-brasileira ganhou clima de carnaval no final dos anos 30, deste século. Muitos rostos tisnados desfilaram ao longo dos anos, pelas ruas da capital e do interior, suas homenagens à negritude, matriz dignificante do Brasil mestiço.
A extinção de muitos grupos aconteceu com a mesma naturalidade com que foram e continuam sendo criados novos maracatus. Passaram o do Outeiro, do Beco da Apertada Hora, Morro do Moinho, Nação Uirapuru e Rancho Alegre, dentre outros. No carnaval de Fortaleza, desfilam o Áz de Ouro (do Jardim América), Reis de Paus (da Piedade), Vozes da África (do Centro), Rei de Espada (do São Gerardo) e Nação Baobab (da Bela Vista). Mais recentemente foram criados o Nação Pirambu (da Comunidade de Quatro Varas) e o pára-folclórico Dragão do Mar, do Grupo de Tradições Cearenses. Na cidade de Itapipoca, o Ás de Espada desfila desde os anos 60 e nos últimos anos foi criado o Reis de Ouro. Na região do Cariri, principalmente em Milagres, a padroeira Nossa Senhora das Dores ainda festeja a coroação dos reis negros.
Com tanta substância cultural é lamentável a nossa insensibilidade diante dessa manifestação. Mais do que um cortejo carnavalesco, o maracatu deveria ser apoiado nos bairros, para descentralizar os espaços de convivência urbanos, através do fortalecimento das comunidade criativas. Em torno de desmontáveis maracatódromos nasceria também uma vida econômica informal, alimentada pelos turistas que iriam aos bairros para ver as apresentações, os ensaios, o artesanato, saborear a culinária e orar. Vejo o maior potencial do maracatu como um ritual de iluminação, de passagem do transe do dia-a-dia para o quase sempre esquecido interior da gente.