Maravilhas do Cinema de Arte
Artigo publicado no Jornal O POVO, Caderno Vida & Arte, pág.4
Quarta-feira, 11 de março de 2015 – Fortaleza, Ceará, Brasil
FAC-SÍMILE
A vinda a Fortaleza do diretor de programação e marketing do Cinépolis, Paulo Pereira, para anunciar no dia 3 passado a parceria desse grupo exibidor mexicano com o Cinema de Arte, coordenado pelo jornalista e crítico de cinema Pedro Martins Freire, pode ser vista como um ato de grande importância cultural para a cidade. Com isso, as salas do shopping RioMar passam a fazer exibições regulares desse projeto que tem 52 anos de existência.
Bom saber que o acordo assegura manter o circuito de filmes com base em roteiros humanizados, diálogos consistentes, boas histórias e qualidade dramática, com suas imagens cruas, ritmos lentos, surrealismo lírico, humor refinado, estilo intimista, enfim, temas profundos, tratados com valor artístico, além das mostras, dos festivais, lançamentos, eventos educativos e dos tradicionais debates após as sessões.
Nessa nova fase, a programação do Cinema de Arte será dinamizada com pré-estreias, lançamentos nacionais e filmes inéditos. Para dar o tom da renovação, o projeto apresentou na última semana – do dia 5 até hoje (11) – uma Mostra Expectativa, da qual alguns filmes entrarão sistematicamente em cartaz. Conferi um dos oito trabalhos exibidos, o uruguaio Senhor Kaplan (Pandora, 2014), do diretor Alvaro Brechner, baseado no romance El Salmo de Kaplan, do escritor colombiano Marco Schwartz.
Cinema substancial, o filme de Brechner conta de um senhor judeu de 76 anos, Jacobo Kaplan (Héctor Noguera), que resolve dar um sentido especial ao viver, sequestrando um suposto alemão nazista, Julius Reich (Rolf Becker), refugiado em uma barraca de praia, para levá-lo a julgamento. Faz isso em cumplicidade de devaneio com Wilson Contreras (Néstor Guzzini), um ex-policial gorduchão, considerado socialmente desajustado, mas que é amigo da sua família. Senhor Kaplan é um filme sobre a realidade nas suas dimensões do concreto, do simbólico e do imaginário.
A volta do Cinema de Arte, interrompido desde o final do ano passado, quando fez duas década de exibição em salas do shopping Iguatemi, é um presente que a rede Cinépolis e o RioMar ofertam a Fortaleza, nesses tempos em que estamos cada vez mais isolados do mundo real. A força do truste do mercado de entretenimento tomou conta da sétima arte, transformando tudo em efeitos especiais, com incríveis técnicas cinemáticas digitais e precisas doses de sentimentalismo barato.
Afora o público que já não aguenta mais tanta mesmice ocupando quase que a totalidade das telas de cinema, existem as pessoas que nunca deixaram de procurar ver produções de arte, assim como cineastas que não desistiram de fazer cinema no qual ação e reflexão dialogam no campo da experiência estética. A opção por canais pagos tem sido uma alternativa, mas essa saída culmina na inviabilização do ritual de sociabilidade que a sala escura coletiva proporciona. Ir ao cinema dá uma agradável sensação de confluência de curiosidades e de vizinhança. Nas sessões de arte, então, esse prazer ganha expansão pela possibilidade do habitual debate posterior e pelas conversas que muitas vezes se desdobram em outros ambientes de convivência.
Comecei a frequentar o Cinema de Arte Universitário, que funcionava na Casa Amarela sob o comando do Eusélio Oliveira, ainda como estudante da Escola Técnica Federal do Ceará (hoje IFCE), na segunda metade dos anos 1970. Depois, no começo dos anos 1980, fiz animado ponto de encontro das sessões e debates do cine Gazeta do shopping Center Um. Além dos bons filmes, tinha, ao lado da bilheteria, uma loja Francinet que vendia discos de boa música brasileira, e frequentadores dispostos a comprar o Um Jornal Sem Regras, publicação universitária independente que eu editava em parceria com o bregastar Falcão.
Com o fechamento da sala do Center Um, no início dos anos 1990, o incansável Pedro Martins Freire conseguiu espaço para o Cinema de Arte no cine Iguatemi e, por um tempo, passou a coordenar também o Stúdio Beira-Mar. Fez mostras, retrospectivas, ciclo de cineastas e lançamentos de filmes com a presença de atores e diretores. Inventou o que pôde para atravessar crises como a da maxidesvalorização do real, em 1999, que tornou muito caro o direito de exibição dos filmes iranianos, espanhóis, franceses, italianos, noruegueses, indianos, hispano-americanos e até mesmo da parcela decente da produção nacional, abalando as distribuidoras de cinema de arte.
Agora, com a parceria Cinépolis e RioMar, um novo tempo se abre para esse projeto tão significativo. Falo significativo por experiência própria. Não tenho dúvida de que muito da forma como observo e sinto o mundo tem alguns quadros que ultrapassam buscas de respostas que vão desde a poesia cinematográfica da rede de dormir de João Maria Siqueira até a paisagem humana de Akira Kurosawa. Seja de onde for, é nessa conta que tenho o cinema feito com arte, o cinema que é arte, o cinema belo e denso, o cinema que inspira, que move a emoção da gente. E muitos dos filmes que me concederam essa sensação eu tive o prazer de assistir nas sessões de cinema de arte.