Marketing da má nutrição
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno3, pág.3
Quinta-feira, 24 de Maio de 2012 – Fortaleza, Ceará, Brasil
A obesidade e outras doenças crônicas decorrentes da má nutrição têm sido uma das preocupações da Organização Mundial de Saúde (OMS), que vem intensificando o incentivo a programas voltados para a minimização desse problema mundialmente tão grave quanto a fome. Seguindo essa orientação a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) preparou um conjunto de recomendações de políticas adequadas sobre a promoção e publicidade de alimentos e bebidas não alcoólicas para crianças.
Apesar de prioritariamente dirigidas a governos, essas recomendações servem também para deixar alertas as empresas socialmente responsáveis e os consumidores cidadãos. No prefácio do documento, que acaba de ser traduzido para o português e publicado pelo Instituto Alana, de São Paulo, a diretora da OPAS, Mirta Roses Periago, diz que as crianças de todas as regiões do continente americano estão sujeitas à publicidade invasiva e implacável de alimentos de baixo teor ou nenhum valor nutricional, ricos em gordura, açúcar e sal.
Este é um problema que ultrapassa condições sociais e econômicas, atingindo ricos e pobres, porque é uma questão de deformação cultural, alimentada pelo insustentável modelo de vida permeado pelo marketing sem limites em todo o planeta, por força do interesse comercial das grandes corporações transnacionais. Os governos não gostam nada disso porque esse marketing da má nutrição faz aumentar os gastos públicos com saúde, repercutindo também na sustentabilidade ambiental.
A promoção e a publicidade influenciam nas preferências alimentares e padrões de consumo das crianças a ponto de enfraquecerem a eficácia do aconselhamento de mães, pais, educadores e cuidadores sobre bons hábitos alimentares, colocando as crianças em risco de obesidade. E quando fala em obesidade o documento refere-se à extensão desse fator de risco, projetada em doenças não contagiosas do tipo diabetes e doenças cardiovasculares.
A OPAS/OMS parece partir da premissa de que, ao ser tratado nos áreas social e econômica, o assunto produz convergências dos mais diferentes interessados em contribuir na busca de soluções. Pode ser, mas sinto falta de abordagens específicas nos campos cultural e ambiental, onde se poderiam trabalhar mais integral e sistemicamente os pontos críticos relacionados ao sensível e à natureza. De qualquer modo, a advertência para que sejam criadas e implementadas políticas de redução da exposição das crianças ao marketing da má nutrição é um passo importante para a diminuição de riscos para a saúde infantil.
Para equalizar o entendimento do seu propósito, a Organização Pan-Americana da Saúde esclarece bem o que palavras e expressões-chave querem dizer: “Promoção”, por exemplo, refere-se a todas as técnicas de marketing que levam mensagens e apelos especiais às crianças, por quaisquer mídias e em quaisquer lugares que elas frequentam, como escolas, creches, bibliotecas, instalações recreativas, clubes e parques, assim como durante eventos esportivos e recreativos, voltados para o público infantil. Entram nesse escopo ainda as mensagens dirigidas a adultos, mas veiculadas em espaços e horários acessados por crianças, como nas salas de cinema.
A palavra “Alimento” nessa discussão diz respeito tanto a alimento saudável quanto a alimento nocivo à saúde. Outro sentido de palavra realçado no documento da OPAS/OMS é a própria palavra “Criança”, definida como pessoa com menos de 16 (dezesseis) anos de idade. E, claro, a expressão “marketing de alimentos para crianças”, entendida como “mensagens de comunicações comerciais destinadas a aumentar, ou causar o efeito de aumentar, o reconhecimento, apelo e/ou consumo de determinados produtos e serviços, inclusive tudo o que contribuir para anunciar ou de alguma forma promover um produto ou serviço” (Recomendação 7, p. 11).
Ao todo são 13 orientações que resumem a decisão de sensibilizar e envolver os países americanos, respeitando o contexto de cada um, na realização de políticas, processos e procedimentos de combate à publicidade, como influenciadora nas decisões de compras e indutora de preferências alimentares. A exposição exagerada da infância às mensagens repetidas e invasivas das empresas, que recorrem ao marketing para vincular emocionalmente as crianças às suas marcas, forçando a venda de seus produtos, contraria drasticamente as boas recomendações quanto a dietas alimentares para meninas e meninos.
Os setores econômicos alimentícios, de bebidas e de publicidade podem ter nesse documento uma fonte de consciência de parte das movimentações desfavoráveis ao marketing da má nutrição atualmente existentes no mundo e que dizem respeito diretamente aos seus negócios. Documentos como esse devem ser encarados pelas empresas como oportunidade para balizá-las com relação a condutas desejáveis e, no caso daquelas ainda adormecidas no velho paradigma do neoliberalismo, despertar para buscas associadas à cidadania empresarial e à economia verde.
A publicação traz inclusive situações de políticas públicas e privadas sobre marketing de alimentos e bebidas não alcoólicas para crianças no continente americano. Mostra que na América do Norte empresas canadenses procuraram elas mesmas definirem classificações de consumo e que, mesmo assim, o governo está examinando opções regulatórias para controlar o marketing de alimentos e bebidas para crianças. As agências estadunidenses estão preparando, com apoio do Congresso, um “jeitinho” de mercado para isentar de restrições esse tipo de marketing. Os mexicanos contam desde 2010 com o endosso oficial de uma emenda do Código Geral de Saúde, que reconhece os efeitos negativos da publicidade de “alimentos pouco saudáveis”.
O documento da OPAS não apresenta registros de providências na América Central. Na América do Sul, os principais destaques ficam para o Brasil, onde desde 2010 existe uma regulamentação da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) exigindo advertências em todas as formas de propaganda de produtos alimentícios ricos em gordura, açúcar ou sal; e para a Colômbia, que incluiu uma definição clara de obesidade em suas prioridades de saúde pública (lei de 2009), sob responsabilidade do Ministério da Proteção Social e do Invima (Instituto Nacional de Monitoramento de Alimentos e Medicamentos).
O documento da OPAS/OMS apresenta aspectos da eficácia das políticas públicas e privadas já adotadas com relação ao marketing de alimentos e bebidas não alcoólicas para crianças. Algumas diretrizes monitoradas indicam que estão sendo cumpridas. Cita casos da indústria alimentícia na Austrália, Canadá, EUA e parte da Europa. No que se refere a cumprimento de normas, monitoramentos feitos na Irlanda, Espanha e Reino Unido demonstram nível elevado de cumprimento, como é o caso espanhol da restrição ao uso de celebridades em comerciais para crianças.
Com esses estudos o documento quer demonstrar que as restrições são viáveis na prática. Dentre os casos apresentados cabe compartilhar um estudo qualitativo encomendado pelo governo francês sobre os efeitos das mensagens nutricionais naquele país. O trabalho revela que mais de setenta por cento das crianças entrevistadas afirmaram que as mensagens nutricionais as fizeram prestar mais atenção à alimentação saudável, embora mais de noventa por cento delas tenham respondido que, mesmo assim, ainda pedem aos pais para comprar bebidas e alimentos anunciados.