Maurício Albano e o sarau de adeus
Artigo publicado no Jornal O POVO, Caderno Vida & Arte, pág.4
Quarta-feira, 18 de março de 2015 – Fortaleza, Ceará, Brasil
FAC-SÍMILE
Conta a lenda que no dia em que o fotógrafo Maurício Albano morreu, seu corpo foi colocado sobre uma cama na varanda de casa; um recanto que dava para o quintal onde conviviam no mesmo instante um segundo e a eternidade. O abrigo de janelas sem vidraças deixava o vento arborizado passar em uma força geológica e espiritual capaz de aproximar cultura e natureza.
O ar puro e o puro amor fraternal espalhado naquele ambiente deixava tudo entregue à percepção, e não ao olhar. Um sofá ao lado da cama me convidou para sentar e sentei. Fiquei calado observando a figura do Maurício, seu rosto sulcado, a barba por fazer, o semblante gracioso e despreocupado de quem partiu em paz interior, acompanhado pela satisfação de quem teve uma vida preenchida de significados.
Em silêncio e de pálpebras fechadas, Maurício contava a amigos e familiares histórias radiantes, como se a tudo estivesse vendo. Fui ouvindo a casa, as fotos e os trecos pessoais dele. A harmonia do corpo com o lugar e a textura da iluminação seguiam o fluxo permanente da vida. Estendia-se à minha frente um corpo e seu contexto, o admirável enredo de um amigo querido.
A música instrumental, executada baixinho, dialogava suave com a quietude. O som estava em tudo e tudo recitava alguma coisa, dando correlação entre o espiritual e o existencial. As árvores declamavam versos da natureza e as pessoas em si eram poemas concretos do texto visual da amizade.
O corpo de Maurício testemunhava a totalidade. Parado, mas não inerte, em seu convite à partida sem adeus da despedida duradoura. Observei seu rosto de perto e só vi em sua face um sorriso traquina, um semblante aberto a quem quisesse penetrar na organicidade de seus segredos, nos mistérios divinos da sua casca sensorial e sutil.
Lindo encantamento do ser pessoa em cigarra de oração silenciosa. A metamorfose humana em cor, forma e na profundidade da linguagem da fonte de onde emanam as necessidades do tempo, do lugar e das circunstâncias. A morte assinalava a presença como um evento da expectativa do viver, como uma realização de quem viveu.
O corpo não estava em um caixão de defunto, porque o Maurício não era um defunto, no sentido etimológico dessa palavra, que em latim quer dizer algo como “aquele que encerrou sua missão”. O caixão aprisiona o morto em sua passagem para o além, separa-o do ambiente, forçando-o a informar que se foi. E o Maurício não estava de saída, ele estava na roda, no seu sarau de despedida.
Sobre seu peito, um papel comum com fotografias impressas foi colocado pelo neto de oito anos. Para o vento não atrapalhar sua fantasia, o menino o fixou com algumas pedras. A cama baixa permitiu também que a neta de dois anos arrumasse ternamente umas flores sobre o corpo do avô, como quem embeleza alguém querido que sai para passear.
Mexendo nas flores ela certamente mexia com o antes e com o depois na gangorra da vida. Seus gestos impactaram meus pensamentos pela familiaridade que ela demonstrava com um presente que já virava memória. A impressão que tive foi a de que ela sabia que o avô não mais brincaria com ela, como gostava de fazer, porém, ela seguiria brincando com ele nas lembranças que afloram nas flores do tempo.
Senti um eco de chamado do quintal. Levantei-me para ver o que graviolas e bananeiras queriam me dizer. Logo o meu olhar chegou ao jeep que estava quase escondido nas sombras da escura folhagem. Foi dentro do velho Gurgel branco que o Maurício pisou no freio da vida e parou de respirar. Aquele carro tem muitas histórias de viagens entre o quintal da casa da Lagoa Redonda e o coqueiral da praia de Picos.
Existem fatos dos quais não podemos fugir. As despedidas estão sempre presentes nas nossas vidas. Uma das prerrogativas do viver é a experiência de perdas evitáveis e inevitáveis. No sarau de adeus do Maurício Albano, o fator doloroso da perda foi aliviado pelo enlevo daquele momento absolutamente único. Aceitar a morte de um amigo querido significa honrar o que ele fez em vida. E o Maurício fez muito, como pessoa, pai, avô e profissional.
A trajetória artística de Maurício Albano está entre as mais significativas da fotografia brasileira de natureza e geografia humana. Ele amava o que fazia, colocava grande carga afetiva, quase passional, para capturar o momento certo do clique. Com maestria e estilo altamente expressivo ele virava elemento da paisagem quando queria revelar o volume de suas formas, o charme dos seus movimentos e seu colorido natural.
Tudo isso fez parte desse fantástico sarau de despedida. No momento em que essa história começa, no corpo de Maurício não circulava mais sangue, mas circulava sentido. A mensagem do sensível não se apaga com o fim da função do organismo. O que ele queria dizer ele disse por toda a vida, sempre com preciosa delicadeza emocional, amorosa, humilde e desapegada. Aconteceu há poucos dias, mas diz a lenda que não dá para saber ao certo quanto tempo duram mesmo poucos dias.