McCartney na janela do tempo
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno3, pág.3
Quinta-feira, 26 de Abril de 2012 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Fiquei com a impressão de ter visto o tempo pela janela dos olhos do público, enquanto assistia ao show de Paul McCartney, sábado passado (21) no estádio do Arruda, em Recife. Para todo lado que eu me virava, fãs e apreciadores do som e da trajetória do ex-Beatles atestavam um estado psicológico de atemporalidades: o garoto de vinte e poucos anos estaria vendo Paul com 70? E o senhor de 70, via em Paul um garoto de vinte e poucos anos?
A aproximação de gerações pela dilatação do tempo no ritmo da vida de uma obra que se fez clássica tem em si a velocidade da convergência do romancear histórias diferentes, embaladas pela força lírica de conhecidas melodias e inspiradas interpretações. Cada um sente e mede o que passa e o que passou, ouvindo ao vivo, cantando junto, vendo o autor em ação, a cantar e a tocar vários instrumentos, na experiência de sentir de perto suas canções em liga com a platéia.
Dos integrantes dos Beatles, sempre tive mais empatia pelo George Harrison – o mais quieto, a guitarra gentil, o “Concerto para Bangladesh” – embora Paul, Lennon e Ringo, cada qual a seu modo nunca tenham saído do meu radar. Mais recentemente eles voltaram a ter presença assídua lá em casa. Meus filhos gostam de tocar suas canções, como estudantes de violão. Para mim, a descoberta dos Beatles por eles é motivo de grande contentamento. Curtindo repertórios de qualidade como o dos garotos de Liverpool é natural que não se deixem pegar pelas produções caça-níqueis dirigidas a crianças e adolescentes.
Em 18 de junho deste ano, James Paul McCartney completará 70 anos. Meus filhos, de 12 e de 10 anos, cantam as suas músicas e cantaram no estádio do Arruda, onde havia muitas outras crianças fazendo o mesmo. Paul McCartney é o compositor e coautor de várias das melhores e mais perenes músicas da história da canção de massa de qualidade e que os Beatles continuam como referência de banda mais influente do pop-rock de todos os tempos. Em quarenta anos de estrada ele pode ser visto na janela do tempo como um dos maiores fenômenos da música mundial.
Somando o repertório dos Beatles e da sua carreira solo, com Wings, The Fireman e nos últimos dez anos com uma excepcional banda de turnê, formada por Brian Ray (baixo e guitarra), Rusty Anderson (guitarra), Paul Wickens (teclados) e o baterista Abe Laboriel Jr, ele tem canções para fazer naturalmente shows honestos como esse, com 35 músicas e quase três horas duração. E ele toca tudo isso de forma relaxada, espontânea, condescendente e na simplicidade das grandes estrelas de verdade, inclusive quando se diverte fazendo cola de termos e frases em português, para animar mais ainda a galera: “Povo arretado!”.
A recepção na arena pernambucana foi calorosa. Parece que só quem não percebeu isso foi o enviado especial do jornal Folha de São Paulo, Rodrigo Levino, que fez uma patética crítica ao que chamou de “platéia dispersa e pouco reverente” (“Ex-beatle sua para sacudir o público em Recife”, p. E12, FSP, 23/04/2012). A começar pelo medíocre trocadilho do título, no qual recorre ao verbo suar, no sentido de transpirar (e isso é verdade, Paul ficou com a camisa molhada de suor) e no sentido de esforço extra para conseguir algo de alguém; no dizer do dito enviado: “Paulo venceu o round contra o público”. Fazer o quê? Mesmo em espetáculos maravilhosos como esse no Recife, tem sempre um mala culturalmente deslocado e incomodado com o que não é espelho.
A viseira do preconceito desse “enviado” calculou em 40 mil um público de mais de 50 mil, disse que o show teve poucas novidades e desdenhou do que chamou de “frases de efeito pronunciadas em algo próximo do português”. Escreveu que “o show demorou um pouco a engrenar” e que “o cantor se mostrou distraído no primeiro terço da apresentação”. Ao destacar particularidades do show, como um medley de canções dos Beatles, alfinetou: “Mas essas particularidades passaram quase despercebidas pelo público”. Ao comparar o entusiasmo da platéia com “bingo de quermesse”, o “enviado” valeu-se de sua mediocridade para afirmar que a platéia só se conectou quando ouviu os fogos que ornamentaram “Live And Let Die” e ao acompanhar “Hey Jude”, por que “é fácil cantar o nanananá”.
Depois de ler o comentário do “enviado”, lembrei primeiro de “Let it be” (“Deixe estar / deixe estar / haverá uma resposta”) e logo em seguida me ocorreu a indagação de “Eleanor Rigby” (“De onde vêm as pessoas solitárias? / De onde elas são?”). E deixei para lá. É melhor deixar para lá. Paul McCartney não saiu de St. John’s Wood ou do condado de East Sussex, nas cercanias de Londres, para dar cartaz a esse tipo de futilidade. Em Pernambuco, ficou hospedado no Nannai Beach Resort Hotel, na bela praia de Porto de Galinhas, em Ipojuca, com ponto de apoio no Golden Tulip, de Jaboatão dos Guararapes.
No sábado (21), quando chegou ao estádio do Arruda no início da noite, baixou o vidro do carro e agradeceu aos fãs que abriram a fila para o seu carro entrar ao lado do portão 5, que dava acesso à arquibancada superior. O aceno teve sabor de retribuição pelo acolhimento. Recife abriu a parte brasileira da turnê “On the run”, que já passou também por Montevidéu, Assunção e Bogotá, encerrada ontem, na Ressacada, em Florianópolis. No bis, ele voltou ao palco agitando a bonita bandeira de Pernambuco, para cantar “Lady Madonna”, “Day Tripper” e “Get Back”. Estava empolgado e empolgava o público; tanto que após ouvir o “Paul, Paul, Paul…” dos fãs, retornou outra vez e encerrou com “Yesterday” e um pot-pourri de sucessos.
Teve de tudo nesse show. Foi espetáculo completo. Logo no início, os dois painéis de alta definição, com 48 metros de altura, dispostos nas laterais do palco, exibiram colagens, algumas em movimento, contando da trajetória de Paul McCartney. Esses arquivos visuais foram expressando sentimentos sonoros, puxando a memória afetiva de uns e aguçando a curiosidade de outros, aquecendo os milhares de espectadores para a chegada do som ao vivo. E a festa começou com “Magical Mystery Tours”, “Junior’s Farm” e “All My Loving”. No céu, as Três Marias faziam parte das estrelas que viram o show lá de cima.
McCartney tocou violão, guitarra, piano, bandolim e cavaquinho, além do seu emblemático baixo Hofner, modelo violino, leve, simétrico e de som encorpado. Psicodelizou a cena com uma guitarra e um piano que pareciam as pinturas em acrílica do Dim. Quando cantou a sutil “Blackbird”, inspirada no desejo de liberdade da mulher negra, a imagem de uma lua maravilhosa invadiu o cenário, fluiu pelos telões laterais e encheu o estádio de poesia. Escolhidos pela produção, fãs de diversas regiões do Brasil subiram ao palco. Uma moça pernambucana virou as costas para Paul, levantou o cabelo e pediu um autógrafo no pescoço, no que ele espirituosamente perguntou: “O que sua mãe vai achar disso?”. E autografou.
Na janela do tempo, o show teve composições novas, como “Only our Hearts”, e também homenagens. Paul ofereceu “Here Today” a John Lennon, “Something”, a George Harrison, “Yellow Submarine” a Ringo Starr, “My Valentine”, a Nancy Shevell (51), com quem casou no ano passado, e “Maybe I’m Amazed”, para a ex-mulher Linda Eastman (1941 – 1998). E para o público que foi ao estádio do Arruda naquela “noite que me lembrará você”, dedicou “The Night Before” tocada por ele pela primeira vez no Brasil.