Mensagens da Casa Redonda
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno3, pág.2
Quinta-feira, 04 de julho de 2013 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Flávio Paiva e Peo na Casa Redonda, durante produção do ensaio-entrevista “Brincar é Urgente!” (Foto: Daniel Garcia, 2008)
Há 30 anos a educadora baiana Maria Amélia Pereira (Peo) iniciou-se em uma jornada educativa disposta a se deixar alfabetizar diretamente pelas crianças. Fez isso por meio de contato cotidiano com meninas e meninos que durante esses anos ajudaram a construir a Casa Redonda Centro de Estudos, em Carapicuíba, SP. Juntamente com equipes de educadoras comprometidas com a dimensão do sensível, desenvolveu uma proposta educacional que tem como ponto de partida a percepção da própria criança.
O resultado desse esforço prazeroso de dar atenção especial à espontaneidade e a naturalidade com que a consciência infantil se constrói e emerge em valores profundos está sendo lançado no livro “Casa Redonda – uma Experiência em Educação”, (PEREIRA, Maria Amélia Pinho, Editora Livre, São Paulo, 2013). Trata-se de um álbum ilustrado com fotos e dois DVDs contendo registros de vivências na grande área verde daquele sítio, onde brotou esse modo de pensar empenhado no reconhecimento da existência de uma Cultura da Criança.
A experiência desse projeto, que sustenta valores vinculados ao pensamento simbólico, normalmente subestimado pelos sistemas teóricos de condicionamento mental ancorados no cognitivismo, apresenta na sua essência três vertentes conceituais básicas: ouvir a criança na dimensão de transcendência das referências de tempo e espaço que existe no brincar, do filólogo Agostinho da Silva (1906 – 1994); considerar o inconsciente coletivo e as representações por ele produzidas, do psicanalista Carl Gustav Jung (1875 – 1971); e potencializar a relação cuidadosa e sutil com o corpo, do médico psicoterapeuta Pethö Sándor (1916 – 1992).
Essas referências foram enriquecidas com a obra fecunda de outros pensadores, educadores, artistas, escritores e poetas, a exemplo de Anísio Teixeira (1900 – 19971), Antônio Nóbrega (1952), Darcy Ribeiro (1922 -1997), Jean Piaget (1896 – 1980), John Huizinga (1872 – 1945), Lauro de Oliveira Lima (1921 – 2013), Lydia Hortélio (1932), Manoel de Barros (1916), Milton Santos (1926 – 2001), Paulo Freire (1921 – 1997), Sri Aurobindo (1872 – 1950) e Tagore (1861 – 1941). E, como não poderia deixar de ser, com a influência das crianças, seus gestos simples, alegria, brilho nos olhos e todos os jeitos de manifestar aspectos encobertos da alma humana, por meio da manifestação do gratuito da vida e suas possibilidades.
Ter um chão para pisar, como meio de fortalecer identificações, desenvolver trocas afetivas concretas e ganhar confiança é um dos fundamentos da proposta da Casa Redonda. Um lugar de onde se possa aflorar, contar histórias e surgir do que se é, em um trajeto de dentro para fora, pelo exercício do desenvolvimento da consciência nascida na mediação com o mundo através da ação. Algo como as formulações pedagógicas que Rolf Gelewski (1930 – 1988) trouxe ao Brasil, também pela porta da Bahia, inspiradas no pensamento de Sri Aurobindo (1872 – 1950), segundo o qual o educador é alguém que sugere e que mostra caminhos de aperfeiçoamento, trabalhando a partir do que está perto para o que está distante, do que é para o que deve ser.
A ideia do chão, como lugar onde a vida acontece, passa tanto pela relação com os elementais (água, terra, fogo e ar), quanto pela dinâmica da coexistência sociocultural. Neste aspecto, a Casa Redonda faz questão de destacar o Brasil como a terra natal dessa experiência, em seu pensar próprio e capacidade de valorização dos saberes locais em diálogo com as culturas do mundo. Mas quando fala em chão, Peo não se refere apenas a um país, ela fala de um lugar onde a criança possa testar a proporção mais aprimorada do equilíbrio em um simples brincar de balanço ou quando empina uma pipa (arraia) e se solta com ela em tempo e espaço fora do cotidiano, testando outro tipo de equilíbrio, o de estar conectada lá no alto com o mistério dos ventos e cá embaixo com a firmeza do solo.
A proposta da Casa Redonda não aceita o empobrecimento da existência, patente na redução da vida em nome de algumas angulações da realidade circunstancial. Por isso sugere o convívio de crianças em parques, quintais e pátios, a fim de que possam caminhar, correr, pular, saltar, trepar, escorregar, puxar, empurrar, rolar, rodopiar, subir, descer, tropeçar, cair e levantar, onde a natureza se manifesta no jogo do claro e do escuro, do verde e do seco, do que brota e do que morre, do fascínio e do medo, enfim, da oportunidade de ter as primeiras experiências sensíveis sobre a beleza, a harmonia, a diversidade, os sons e o silêncio, onde tudo avisa que somos natureza.
Maria Amélia Pereira (Peo) expõe uma posição crítica à ideologia utilitarista que mudou o nome da escolaridade infantil de Jardim de Infância para Pré-Escola, o que “gradativamente vem comprometendo o desenvolvimento harmonioso da espécie humana, desrespeitando seu ritmo e seus ciclos” (p.47). A equipe do projeto navega no mesmo barco dos pensadores e poetas que entendem o brincar como um ato sagrado, pela solenidade, seriedade, compenetração, sentido criativo e simbólico. Brincando, a criança suspende o tempo e elimina fronteiras, podendo nesse estado conversar com seres imaginários, projetar mundos e testar hipóteses para conflitos do dia a dia, em uma movimentação fundamental para o desenvolvimento do pensamento abstrato.
Citando Agostinho da Silva, a autora fala de uma escola onde crianças desenvolvam o espírito de servir e não o de mandar, uma escola que ofereça os últimos progressos da ciência e da tecnologia, mas ao mesmo tempo contribua para a antevisão do que ainda está por esclarecer. “Numa sociedade em que as ‘competências’ passam a ocupar a oração principal do nosso sistema educacional, não há dúvida de que a escola vem sendo atrelada às diretrizes que norteiam o sistema econômico vigente, fortalecendo e endossando através de ‘estereótipos educacionais’ o conceito de um ser humano modelado para servir aos postulados que emergem de fora para dentro” (p. 34).
A expectativa refletida nas mensagens da Casa Redonda projeta-se em uma educação onde as crianças deixem de ser vistas apenas como dados estatísticos. Na opinião de Peo e das educadoras da Casa Redonda, as crianças estão resistindo como podem ao velho conceito de educação de “preparar para a vida”, de “levar alguém a ser isto ou aquilo”, sem atentar para a integração dos corpos físicos, emocional, mental e espiritual, na aventura da consciência rumo ao desconhecido. E resistem heroicamente com toda sorte de indisciplina, rebeldia e agressões, como respostas de um corpo, de uma mente e de uma alma, mutiladas, aprisionadas e estigmatizadas pela sociedade como criança-problema.
O livro traz relatos deleitosos de uma prática teorizada e de uma teoria praticada, com fatos, curiosidades, histórias, observações das sinalizações das crianças em três décadas de trabalho paciente e comprometido com a descoberta do que há de autêntico no caráter exploratório do brincar e na criança, na sua condição ativa de uma existência preciosa e profunda. E traz uma esperança de que no século XXI “tenhamos a coragem de nos deixar ser alfabetizados pela língua das crianças” (p. 61), iniciando o tempo da experiência humana, na qual se reconheça a existência da Cultura da Criança.
Para falar do “impulso lúdico” que há na relação da arte com a brincadeira, Peo lança mão de recordações que tem da sua mãe chamando os irmãos para almoçar e, brincando no quintal, “eles não a escutavam, tal era a concentração e entrega ao que estavam fazendo”. Foi a primeira vez que ouviu “Esses estão fazendo arte” (p. 207). Daí, ela conta da sua longa experiência de educadora, desde que começou efetivamente no Centro Educacional Carneiro Ribeiro, criado por Anísio Teixeira em Salvador, até ser desafiada pelas crianças da Casa Redonda, quando entregou-se “aos desafios e aos riscos de acreditar na possibilidade de reinventar a escola” (p. 242).
Para ler o ensaio-entrevista “Brincar é Urgente!” com Maria Amélia Pereira (Peo), CLIQUE AQUI.