A história do Bambi, aquele bichinho de pelagem avermelhada, com pintas brancas pelo corpo, que perde a mãe para caçadores de animais silvestres, foi publicada pela primeira vez em 1923 pelo escritor húngaro Félix Salten (1869 – 1945). A partir de 1942 os estúdios Disney ajustaram esse empático ecodrama familiar para o cinema de animação, tornando-o conhecido em todo o mundo, emulando o surgimento de incontáveis montagens de teatro infantil.

A universalização de um personagem faz com que o uso do seu nome se torne comum em diferentes domínios. Tem uma genialidade extraordinária na escolha que Salten fez para batizar o protagonista da sua novela, visto que a palavra bambi tem origem no italiano bambina ou bambino, tanto podendo ser feminino quanto masculino. Assim, uma filha, um filho, uma bebê ou um bebê, enfim, toda criança carinhosamente é bambi.

Na infância não tomei conhecimento das encenações teatrais, dos filmes nem do livro “Bambi, a história de uma vida na floresta”, de Felix Salten, pois somente em 2019 essa obra clássica foi lançada no Brasil pela editora Wish. Embora não soubesse sequer da existência desse ícone da literatura infantil tornei-me amigo de uma bambi. Era uma corsa com poucos meses de idade à qual dei o nome de Vidinha.

Vidinha foi a forma simplificada que a minha imaginação infantil encontrou para chamar a filhinha de veado que um dia o meu pai me entregou para cuidar. Hoje, décadas depois, revivo tudo isso pelos olhos enlevados da memória e vejo o quanto esse nome suscita significações relacionadas a aspectos essenciais de uma vida delicada, afetuosa, alegre e lúdica.

A família da bambi que aprendi a amar provavelmente tinha sido morta por onças, caçadores ou por outros predadores. Órfã, ela foi recolhida pelo meu pai à margem da estrada carroçável que dava acesso a nossa casa no Poço Comprido, fazenda de plantar e de criar localizada no sopé da serra do Belém, no sertão dos Inhamuns, entre Independência e Tauá, onde moramos por um tempo.

Ela estava profundamente abatida, mas seu ânimo foi sendo recuperado à medida que eu dava leite de gado na mamadeira para ela beber e tomávamos banho juntos ao lado de duas cisternas que chamávamos de tanques. Não demorou quase nada e já estávamos brincando de correr e saltar obstáculos pelo grande e arborizado quintal da nossa casa urbana.

A Vidinha tinha pernas compridas e firmes; só ficava atrapalhada quando a nossa corrida se estendia ao interior da casa. No corredor de cimento queimado, suas patinhas finas e pontiagudas deslizavam e, solidário, eu caía com ela no chão colorido com pigmentos de tinta em pó Xadrez, com direito a momentos de descanso no piso ornamental da sala de mosaico hidráulico.

Eu gostava de observar seu comportamento de criatura da mata. Sempre que ouvia algo estranho ela levantava as orelhas, ficava com uma parada e a outra girando na tentativa de identificar a origem do som. Às vezes movimentava as duas orelhas. Aquilo era mágico para mim. Ela também me observava. Não conto as situações em que, mesmo criada na liberdade do quintal, ela se aproximava da casa e ficava parada na passagem do alpendre olhando para mim com cara de curiosa.

Percebo a minha Bambi e o Bambi da literatura, do teatro e do cinema como seres dotados de elegância transbordante, ar dócil, olhar cativante e maneira incomum de encantar, mesmo um vivendo em uma fria floresta de nevasca e o outro ao sabor do calor da caatinga. Ambos fazem parte da família dos cervídeos, mamíferos ruminantes que estão presentes em quase todos os continentes.

Divertíamo-nos um com o outro. Até que um dia estávamos na sala brincando de olhar para a rua pelos buracos do cobogó da janela que dava para a Praça do Mercado e fomos abordados por uma senhora conhecida na cidade por botar quebrante em crianças, plantas e animais. Na crença popular, tudo o que ela encarava achando bonito murchava, adoecia ou morria.

Minha mãe notou nosso silêncio e procurou saber o que estava acontecendo. Ao dar-se conta de que a dita senhora tinha acabado de olhar e de achar a Vidinha graciosa, apressou-se para colocar uma fita vermelha no pescoço da pequena corsa como defesa contra mau-olhado, mas não teve jeito, a bambi foi esmorecendo e pouco tempo depois caiu no chão toda se tremendo e morreu. Essa lembrança confusa, no entanto, nunca abalou o sentimento brincalhão e amável que guardo dessa amiga de infância.