Quem diria que o simples hábito de gravar com câmeras de celulares poderia contribuir para inflexões nos rumos do mundo. Foi o que aconteceu com o vídeo do assassinato de George Floyd, 46, afro-americano morto barbaramente no dia 25 passado pela polícia da cidade estadunidense de Minneapolis, que saiu das ruas para o compartilhamento nas telas das redes sociais digitais, repercutindo nos meios de comunicação e causando grandes manifestações de revolta em todo o país, com ondas de protestos antirracistas pelo planeta.
A gravação mostra uma cena de asfixia em que, antes de falecer, a vítima negra repete para o policial branco que não está conseguindo respirar. Imagens como essa têm o poder de provocar avalanches de sensações, alcançando por onde passa desassossegos com problemas sociais e políticos, desde o mal-estar das desigualdades até o desconforto das injustiças. A aproximação entre tais incômodos corriqueiros abre a porta de nexos da vida concreta e escancara janelas virtuais para a coesão do boca-a-boca em redes transfronteiriças da geografia humana.
A imagem gerada em ato tenso, traumático e casual revela o suficiente para as pessoas reagirem, conscientes ou não, ao que veem, forçando o acontecimento a se manter no presente, portanto, podendo ser testemunhado “instantaneamente” mesmo depois de ocorrido. O que se vê, o que se sente e o que se imagina a partir dos poucos minutos filmados emerge em comunhão, potencializando o senso de que os desrespeitados não precisam mais estar sozinhos no anonimato da discriminação e das injustiças. O racismo evidenciado em si ganha relevo no contexto-mundo, como algo não mais suportável da deformação social fundada na negação da diferença.
O ato condenável vira imagem mental suficientemente perturbadora, o que aciona as conexões éticas e emotivas das pessoas, na evocação de memórias, de histórias e de experiências individuais e coletivas envolvendo situações de hostilidade, sobretudo com gente negra. A prática do compartilhamento de vídeos com violações da dignidade humana tem a força do chamar para ver algo que se passa. É como se alguém virasse para você e dissesse: “Está vendo isso?”. E quem recebe a imagem na tela sente essa proximidade do chamado e chama outras pessoas, até se formar um aglomerado de observadores do crime, autuando o assassino em flagrante, mesmo em tempo presente expandido.
Essa intervenção mobilizadora feita pelas pessoas comuns faz parte de um fenômeno social e político que, desde 2009, passei a conceituar de “cidadania orgânica”. A ordem conservadora, que atribui o poder de influência apenas a detentores de fama, prestígio e poder político, econômico, científico, artístico e de entretenimento, vai perdendo espaço para o anônimo que, com microfeitos, pode causar grandes eventos mundiais.
Alguém que grava algo que importa – e o grito de que “vidas negras importam” é cada vez mais alto – passa a ser agente de um olhar coletivo integral. A imagem viralizada adquire, assim, a condição de testemunho próprio, impondo-se ao lado do que mostra. Esse fator cria condições para que grupos étnico-sociais, povos e nações em desvantagem histórica com relação à capacidade de influir, possam contribuir mais efetivamente para novas e necessárias perspectivas da humanidade.