Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3
Quinta-feira, 19 de Novembro de 2009 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Na música Filosofia do Samba, Candeia (1935 – 1978) diz que “cego é quem só vê aonde a vista alcança”. Para ele é preciso enxergar o tema na lembrança e não apenas no que está diante do nariz. Assim, tenho me esforçado para tentar compreender o que está se passando na cabeça do ministro Juca Ferreira, da Cultura, para manter sigiloso o anteprojeto de lei que trata da atualização da legislação do Direito Autoral no Brasil, enquanto é urgente e extremamente necessário tratar do assunto nesse momento de incalculáveis possibilidades culturais, sociais, econômicas e políticas criadas pela internet e pelas tecnologias digitais.
A proposta do Ministério da Cultura (MinC) para alteração da Lei 9.610/98 teria sido elaborada aproveitando parte das ideias colhidas em uma série de eventos realizados em 2008. O pior é que fragmentos do documento ficam vazando e causando uma desagradável confusão, que só favorece a concentração das novas corporações transnacionais do comércio de conteúdos, que estão transformando a arte, a literatura, enfim, os bens culturais em commodity, em uma replicação descarada do que tem acontecido com a soja, o minério de ferro e a carne bovina.
O que chama a minha atenção é a ausência, nas pautas dos fóruns e seminários promovidos ou apoiados pelo MinC para discutir Direito Autoral, dos três principais problemas que precisam ser solucionados em favor do interesse público envolvido nessa questão: 1) o aumento do controle da cultura pelo mercado, 2) qual o papel do Estado diante desse fato e 3) o que os autores propõem para a adequação da legislação de Direito Autoral na sociedade digital. Na ânsia de obter legitimidade à sua proposta, que não diz claramente qual é, o governo federal acaba fomentando a desavença entre autores e usuários de cultura.
Na semana passada, nos dias 9 e 10, a Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) realizou em São Paulo, com patrocínio do Ministério da Cultura, o III Congresso de Direito de Autor e Interesse Público, com o objetivo de analisar as propostas de revisão da Lei de Direitos Autorais. Por estar montada na mesma base inconsistente dos encontros que ainda misturam Direito Autoral com patentes industriais, programas de computador e domínio na internet, o encontro não atendeu os objetivos pretensos e o MinC, que pretendia usar esse congresso como plataforma para a revisão da Lei 9.610/98, se viu obrigado a adiar sua “consulta sobre Direito Autoral”.
Por não estar apoiada no debate essencial, a questão do Direito de Autor no Brasil torna-se cada vez mais complexa e temerária. A falta de diálogo franco entre governo e sociedade dá a impressão de que o problema é a tecnologia e não o seu uso; de que o problema é o terrorismo da criminalização dos consumidores e não uma nova forma de remuneração dos criadores de conteúdos; de que o problema é o compartilhamento e a cópia e não a mais valia do chamado capitalismo cognitivo… E por aí seguem os transtornos entre o público e o privado, o individual e o colaborativo, o comum e o particular, o mercado e o Estado, o republicano e o fascista.
O MinC quer impor o novo sistema de copyright dos Estados Unidos e não coloca abertamente as razões que o levaram a optar por esse sistema, que é o Creative Commons, mesmo antes de lançar o Fórum Nacional de Direito Autoral, o que fez os burocratas do ministério se apegarem tanto a essa solução do mercado de conteúdos que taparam os ouvidos para qualquer alternativa de facilitação do acesso aos bens culturais de cunho sócio-político e cultural. E fica difícil aproveitarmos o melhor do nosso caráter de genuína sociedade aberta para potencializar a nossa oralidade internética e transformar a criatividade mestiça brasileira em desenvolvimento.
Assumir que o culpado é o autor, antes mesmo do estabelecimento de um marco legal para o uso da internet não parece uma boa política ministerial. Todos os países desenvolvidos souberam valorizar seus autores na construção do sentido de destino. O que o MinC deveria estar fazendo era melhorar as condições de proteção autoral para a dinamização da cultura brasileira no diálogo global e não ficar forçando a barra para alterar a lei simplesmente com a finalidade de adequá-la aos novos modelos de negócios do pós-neoliberalismo. É uma contradição ver um ministério da cultura colocando os interesses econômicos das corporações transnacionais acima dos interesses sociais.
Os autores precisam do apoio do Estado para se libertarem dos contratos leoninos forjados pelos monopólios da indústria cultural tradicional e do sistema corrompido das entidades de arrecadação e distribuição de Direito Autoral, mas necessitam também dos órgãos oficiais de cultura para não serem tragados pela sanha dos grandes portais, provedores e vendedores de conteúdos, sejam os que operam nos canais de venda da internet, sejam os que estão comprando nossos catálogos para neutralizar a produção brasileira e intensificar a “descultura” do best-seller, do hit jabaculê, da arte sem alma das anti-galerias e do falso estratagema de ascensão, simbolizado pelas criaturas famosas dos videos efêmeros lançados no ciberespaço.
Afinal, uma coisa é ampliar a difusão do conhecimento, valorizar a produção colaborativa e democratizar o acesso a produtos e serviços culturais; e outra coisa é favorecer a manipulação das hegemonias de influência social, reforçar os planos de estímulo a “livres” fornecedores de mão-de-obra gratuita e contribuir para o empobrecimento da riqueza coletiva, com o fortalecimento da massificação das tendências de consumo, hábitos e atitudes.
Por ocasião do congresso da UFSC a caixa-preta do MinC deixou escapar a intenção de criar o Instituto Brasileiro de Direito Autoral (IBDA) e o que poderia ou poderá ser uma festejada boa ideia fez foi arrepiar todo mundo por conta do clima de descrédito estabelecido pela falta de transparência do Ministério da Cultura. É terrível essa sensação de ambiguidade do governo, no seu suposto atendimento aos interesses das corporações do mercado de conteúdos, sobretudo daquelas que trocam mensagens com os consumidores em canais diretos, como os negócios estruturados na rede mundial de computadores e as empresas de telas móveis.
O Direito Autoral é um direito incômodo no crescente e cada vez mais promissor comércio de bens renováveis e conectáveis. Baixar custos e aumentar margens de lucro faz parte dos esforços naturais de toda atividade empresarial. O que não tem mais sentido é o Estado continuar servindo de capacho do mercado. Asfixiar os autores é uma maneira de abrir mão da formação de consciência crítica, normalmente assumida por artistas, escritores, acadêmicos e pelos políticos que formulam, para entregar ao bel-prazer das fórmulas de felicidade homogeneizante do consumismo e sua cultura de karaokê.
Os urdimentos de meios excepcionais como a internet contribuem efetivamente para a mudança de noção do viver e devem ser utilizados para reverter o caminho de degradação da vida e das relações humanas, que vêm sendo cruelmente professado pela lei da vantagem, pela esperteza e pelo dilacerante senso de que “quem for podre que se quebre”. Diferentemente da sociedade da performance, na qual todo espaço é palco e para ser autor basta uma simples revelação de privacidade, na sociedade da diversidade cultural, onde os autores inspiram a interpretação do mundo, todo palco é espaço de expressão da dignidade humana.