Mobilização pela leitura
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3
Quinta-feira, 10 de Abril de 2008 – Fortaleza, Ceará, Brasil
A Secretaria da Educação do Ceará, Seduc, promoveu na segunda-feira passada um encontro, em Fortaleza, dos secretários municipais de educação e diversos grupos de profissionais de educação pública, para fazer um “Pacto pelo Ceará Leitor”. Participei do evento como palestrante, desafiado a colocar em discussão alguma forma de mobilização social pela leitura. Toda vez que me deparo com esse assunto começo procurando reanimar a minha convicção de que a leitura nasce fora do livro. A melhor maneira de o leitor chegar ao livro é quando ele tenta se descobrir na reelaboração que a literatura faz da realidade.
A contribuição que procurei oferecer ao debate foi concebida a partir de fragmentos de quatro experiências de dimensões, formatos, metodologias e alcances humanos e territoriais diferentes. Tomei emprestado idéias dos projetos “Circulos de Leitura”, de Diadema, do “Fábulas de Niche”, desenvolvido em Cuba, do “Amigos da Escola”, realizado em diversas regiões brasileiras, e dos “Agentes de Leitura”, praticado em municípios cearenses. São experiências de conceituações distintas, que têm influído de alguma maneira para alterar a compreensão e o modo de funcionamento do dia-a-dia da vida escolar e comunitária onde são aplicados.
Pensei em um programa que diferisse dessas experiências, no que fosse possível levar as escolas da rede pública de ensino aos seus bairros e comunidades, em busca de ampliar os espaços de valorização da leitura. Sei que, com tanta lan-house e tanta atração ao mundo das mais variadas drogas, falar de “Vivências Literárias” pode parecer um despautério. Essa foi a resistência encontrada pela psicanalista Catalina Pagés, quando criou os “Círculos de Leitura” em escolas da violenta Diadema, até descobrir que os jovens daquela comunidade há muito esperavam uma oportunidade para refletir e expressar o que sentiam. Eles estavam ávidos por alguém que lhes contasse histórias.
Da platéia, uma pergunta de grande pertinência me ajuda a organizar a fala: “Qual a relação entre o papel dos gestores públicos e a estruturação desse projeto de mobilização pela leitura?”. Entendo que os gestores das áreas de educação e de cultura devem oferecer o suporte necessário, inclusive no plano da articulação política, para que as lideranças escolares possam, dentro da realidade de cada uma, ir aonde a comunidade se encontra, para promover as “Vivências Literárias”. As pessoas estão à espera de alguém que se interesse por saber como elas vêem o mundo. Ao promover facilidades educativas, de maneira coletiva e com pluralidade de visões, a escola se relegitima, ampliando as condições para reforçar o apoio que necessita da comunidade.
Os “Círculos de Leitura” utilizam sempre os clássicos, cujas idéias sobrevivem ao tempo, para suscitar identificações dos enfrentamentos cotidianos com os desafios do universo ficcional. Imagino um programa de “Vivências Literárias” fora da escola, combinando a dinâmica literária de obras clássicas e contemporâneas, relacionadas à cultura local, como fundamental no processo de abolição da passividade da rotina e superação do modelo mental de colonizado. Os participantes precisam ganhar livros de presente, quer fruto de doações oficiais, de campanhas de arrecadação ou da iniciativa privada, consciente da importância dos investimentos criativos.
A experiência do promotor cultural e escritor Lázaro Saavedra, conhecido como el Niche, tem sido aplicada em centros educacionais cubanos. A partir de fábulas de sua autoria ele faz um trabalho de caráter formativo e recreativo para incentivar a leitura compartilhada entre crianças e adolescentes que, após se relacionarem com os textos em sala de aula e em casa, se encontram com o autor para recriar trechos da narração, agregando o jeito como cada estudante interpreta o mundo. A maior contribuição das “Fábulas de Niche” é a criação de condições para a juventude descobrir valores em si mesma e no lugar onde se desenvolvem.
O projeto “Amigos da Escola” que, por meio de mobilizações provocadas pela Rede Globo de Televisão, procura fortalecer ações já desenvolvidas pela escola pública brasileira, tem, entre os seus eixos, um de “Estímulo à leitura”, com destaque para a valorização das manifestações culturais de cada localidade. Essa ação trabalha com a idéia de “Comunidade de Sentido”, realizando inclusive saraus literários sobre formas variadas de leituras de um mesmo livro, mostrando que cada texto pode ser visto de diferentes maneiras, dependendo das experiências de vida e de leitura de cada pessoa.
A participação fortalece a sociedade, seus laços sociais e culturais, as relações interpessoais e entre grupos, para compromissos comuns e compartilhamento de intenções comunitárias. Como a força transformadora da leitura foi historicamente negada à sociedade brasileira, temos essa constrangedora dívida atávica a ser paga com muito empenho e mobilização social. As secretarias da Cultura e da Educação do governo Cid Gomes têm chamado esse desafio de “formação de uma sociedade de leitores”. Essa determinação está evidenciada no espírito de cooperação do Programa Alfabetização na Idade Certa, PAIC, da Seduc, e matriculada nas ações de priorização do livro e da leitura, da Secult.
Boas idéias e boas iniciativas não faltam, mas talvez não se bastem, sobretudo no que se refere à mobilização social para a leitura. Ao perguntar se não seria o caso de incluir um programa de “Vivências Literárias” entre as ações de estímulo à leitura que estão sendo implementadas, estou revelando que acredito no que seria uma pedagogia da integração, tecida no contato regular da escola com as famílias e a comunidade, para o delineamento de novas coordenadas sociais. Como mobilização se faz com causa e confluência de interesses, esses encontros poderiam ocorrer onde as pessoas já se encontram por motivos artísticos, religiosos, comerciais, desportivos e sociais.
O que leva à leitura é o desejo de conhecer o que os livros têm a nos dizer. Por isso, sou favorável que um programa de “Vivências Literárias” dispense as publicações produzidas com propósitos exclusivamente paradidáticos. Esse negócio de pegar alguém que tem um bom texto para sair escrevendo sobre a seca, a água, o folclore etc, torna-se muitas vezes um desserviço à formação de leitores. Literatura é literatura; livro didático é livro didático! O que não quer dizer que os livros de literatura não devam ser utilizados com finalidades relativas ao ensino. Claro que devem. Desdidatizar a leitura é apenas uma melhor opção para permear a realidade nos espaços de compreensão expandidos pela literatura e seu leque de liberdades para a recriação subjetiva do leitor.
A literatura descreve a realidade de maneira muito particular e livre. Nas “Vivências Literárias” as pessoas receberiam de volta muito da intimidade que a obra literária toma emprestado das suas vidas. O desejável nesse tipo de movimentação é conseguir que o leitor passe a se encontrar nas histórias, na História, nos sentimentos que constroem as emoções, na ficção, nas fábulas… É importante que os participantes possam assumir o papel de protagonistas no jogo do quem se identifica com quem, quem já esteve em situação parecida, como agiria em circunstância semelhante, como se saiu, como se sentiu, enfim, na apreensão do drama do personagem para a vida real, local e atual, elevando sentimentos e deixando aflorar o parâmetro humano.