Monteiro Lobato na pela de Juca
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3
Quinta-feira, 12 de Abril de 2007 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Juca era a maneira como o escritor Monteiro Lobato (1882 – 1948) costumava ser tratado em casa. Isso talvez não seja novidade para muitos de seus estudiosos e fãs. Mas se boa parte do que ele fazia no dia-a-dia não estava nos livros agora vai estar. Um bom apanhado de situações pouco conhecidas da personalidade e da vida do escritor será tornado público com o pré-lançamento, no próximo dia 18, do livro Juca e Joyce: Memórias da neta de Monteiro Lobato / Depoimento de Joyce Campos Kornbluh a Marcia Camargos (Editora Moderna, 112 p., R$ 23,90), na Biblioteca Monteiro Lobato, em São Paulo.
O dia 18 de abril é dia do aniversário de Lobato e, por isso mesmo, foi oficialmente instituído como o Dia Nacional do Livro Infantil. Este ano comemoramos os 125 anos de nascimento do autor do Sítio do Picapau Amarelo e os 90 anos da pesquisa realizada por ele para descobrir os traços definidores do nosso Saci Pererê. É, portanto, festa no coração da Emília, Dona Benta, Narizinho, Pedrinho, Tia Nastácia, Visconde de Sabugosa e de tantos outros personagens que vieram ao mundo pela força inventiva do criador da literatura infanto-juvenil brasileira. Festa também na vida de sua neta Joyce, que completa 77 anos neste ano de 2007, a idade certa para quem cultivou saci na cabeça por pelo menos 7 anos virar um deles. E ela fez isso por toda a vida.
O livro Juca e Joyce proporciona uma prazerosa viagem no tempo pelos caminhos da memória de uma neta que nos leva a ver seu avô de perto. Essa história chega ao leitor em linguagem bem arquitetada, texto enxuto e cativantes ilustrações. Um trabalho reconstrutivista, cuja essência nos leva a perceber o tanto que Monteiro Lobato está vivo e pulsante em nossas vidas. Lobato aparece no livro como o avô, mas também como o escritor, o sonhador e o empreendedor da brasilidade.
Ao nos aproximar da intimidade de Lobato, de suas manias, o livro torna-o mais admirável. Coisa que só uma neta que conviveu com o avô por 18 anos, desde o nascimento dela, em 1930, à morte dele, em 1948, pode fazer. Juca e Joyce é uma obra de narração encadeada por um reviver de sensações que descreve o célebre escritor em seu mais simples jeito de ser. O depoimento de Joyce chega na hora certa, na hora em que o Brasil descobre que precisa ler mais e que os livros de histórias do Sítio da Dona Benta, tão fundamentais para a educação brasileira, estão prestes a ser relançados em edição renovada e bem-tratada.
Marcia Camargos, com um olho jornalístico e outro de historiadora, organiza bem o pensamento de Joyce em um agradável exercício de conversa e de escrita. Assim, ela contribui para a neta manter as sinapses certas na hora de relatar sua ampla relação com o avô. A memória, quando bem suportada por documentos do tipo fotos e cartas, como ocorre em Juca e Joyce, fica mais sólida e mais convincente. O fato de o relato não ser a única fonte do trabalho resulta em recordações sob medida, com adequada contextualização do estímulo, reforçando o valor do testemunho.
Joyce reinterpreta suas lembranças no filtro do tempo, transbordando em observações privilegiadas sobre o processo de criação do avô, o estilo de se barbear, as aventuras do pijama listrado e até o comparecimento da agulha com a qual sempre andava enfiada no paletó para o caso de alguém precisar. As observações únicas de Joyce são preciosidades para estudiosos e amantes lobatianos. O modo como ela fala que ele adorava pescar, jogar xadrez e caçar borboletas, ou a revelação de que ele era habilidoso e gostava de consertar tudo, mistura-se com o seu costume de comer bolinhos de chuva, rapadura, pé-de-moleque, gelatina de sagu, doce de mamão verde e bolo de fubá e de oferecer Biotônico Fontoura para as visitas como se fosse aperitivo.
Juca e Joyce é também um livro de ensaios fotográficos de Monteiro Lobato. Fotografias que declaram por si a efetividade entre avô inquieto e neta levada. As fotos são fabulosas, têm carinho na luz e nas sombras. Joyce conta a Marcia que “quando tudo caminhava bem, ele fotografava” e que “quando as coisas pioravam, e surgiam problemas, ele pintava aquarelinhas para relaxar, esfriar a cabeça”. Felizmente Joyce só aparece nas fotografias, em muitas delas. Além das excelentes fotos, o livro publica aquarelas e nanquins feitos pelo escritor, entremeados com a maneira peculiar como Joyce fala do seu tempo de criança e de como aprendeu com Juca “a fazer tudo o que uma criança não deveria fazer, como pegar aranha, minhoca e taturana com a mão”.
O professor e pensador Rubem Alves considera a existência de dois tipos de memórias: a que tem vida própria e a que não tem. A memória com vida própria surge quando quer, enquanto a outra espera que a chamemos. Em Juca e Joyce nos deparamos com a presença das duas e isso constrói a densidade e a leveza do livro. Ora aparecem as memórias com base em documentos, ora chegam aquelas à revelia. A conversa bem sincronizada entre Joyce, a neta, e Marcia, a pesquisadora lobatiana, possibilitou a criação das condições necessárias para despertar a caixa de memórias vivas que Joyce tem de Juca.
Ao contar detalhes da vida e da maneira de ser de Monteiro Lobato, sua neta Joyce reparte a parte do avô que era só dela com todos que o amam e admiram sua produção literária e inquietação política. O que estava arquivado em memória reservada passa a ser de conhecimento geral. Ela reprocessa imagens da infância e da adolescência na recuperação de uma memória cheia de encantos, travessuras e admiração pelo avô. Recordações com carinho, que oferecem novos sentimentos a velhos enunciados, instigando novas curiosidades sobre a vida e a obra dessa grande personalidade nacional.
O escritor Machado de Assis (1839 – 1908) dizia que “o menino é o pai do homem”. Ao ler Juca e Joyce digo que nesse livro a neta é a avó de Juca. Se a neta foi ele quem fez, o avô é ela quem faz. A paisagem de um é a paisagem do outro. A idealização do avô estava no olhar infantil da neta que com ele interagiu sem muitos questionamentos sobre o que ele representava, embora declare que o considerava acima dos outros mortais. Juca floresce em Joyce na força reconstrutora das lembranças. Lembranças e relatos difíceis sobre alguém, a respeito do qual já existe uma sólida memória coletiva.
Marcia deu espaço à mente fantasiosa de Joyce mas com o cuidado de não tornar seu depoimento ficcional. O literário em Juca e Joyce está na liga que estabelece a relação avô e neta. O texto trata essa relação com o respeito que ela e ele merecem. As histórias contadas por Joyce nos parecem familiares porque no fundo no fundo todos somos lobatianos e gostamos de ouvir histórias. O que torna o livro Juca e Joyce mais atraente é o fato de Lobato estar muito vivo na brasilidade que ajudou a cultivar. Não é um livro sobre o passado, mas sobre uma relação que se faz presente na perenidade dos seus personagens e no seu desejo de construir um País melhor desfrutado pelos brasileiros. Ele tinha a convicção de que a elite da qual fazia parte tinha a obrigação de tomar a dianteira na resolução dos problemas do País.