MPB/RAP – Convoque seu Criolo
Artigo publicado na RIVISTA do MINO nº 156 (Editora Riso), p. 20
Edição de março de 2015 – Fortaleza, Ceará, Brasil
FAC-SÍMILE
O ponto mais imediato da existência humana é o cotidiano. Os impulsos que provocam os nossos atos diários partem naturalmente das peculiaridades do mundo que nos cerca para se afirmarem como realidade social. A música é parte da essência dessa práxis e, quando tomada de autoconsciência, revela o espírito aberto das gentes em seus quereres e viveres.
A música do compositor e cantor Criolo é assim, cheia de conhecimento crítico das circunstâncias de quem mora na periferia e de apropriações de significados negadores dos discursos dominantes. Produto de uma compreensão moral e estética de vitalidade intelectual, poética e filosófica, ela é dotada de força emancipatória.
O novo CD de Criolo, que tem o sugestivo título “Convoque seu Buda”, é todo feito de composições intertextuais, que dialogam entre si, dando mais sentido ao que dizem. Na faixa que dá nome ao disco, ele avisa que é hora de meditar porque “o clima tá tenso”. E compara a vida real na favela com a ficção dos videogames de violência: “Aqui não é GTA, é pior, é Grajaú (…) Toda noite alguém morre / preto ou pobre por aqui (…) Sonho em corrosão, migalhas são”. Canta anunciando semelhantes e buscando o próximo onde ele estiver.
Com arranjos contundentes e conteúdos intensos de atualidade, o trabalho de Criolo coloca definitivamente o rap na frequência da MPB nesses tempos de hipermodernidade. É um som invocado, bom para pensar o país fora da mania de muita gente que acredita poder mudar o mundo sentado no sofá da sala, fazendo postagens nos portais de serviços virtuais de relacionamento.
Plasmando a generalização da marginalidade, em “Casa de Papelão”, ele aborda a questão das drogas olhando nos olhos “sem dar sermão” para dizer que “Toda pedra acaba, toda brisa passa / Toda morte chega e laça / São pra mais de um milhão”. E complementa: “Esperança à mingua, torneira sem água”. No mesmo tom, na faixa “Duas de Cinco”, ele amplia o conceito de droga para determinadas religiões e para o consumismo: “E cocaína é uma igreja gringa (…) é salto alto (…) mas nem todo mundo é feliz”.
Desse jeito, a meta é azedar. E os pais dizem aos filhos: “Tá bom ou quer mais açúcar?”. Responde em “Cartão de Visita”, que tem participação especial de Tulipa Ruiz: “Acha que tá mamão, tá bom, tá uma festa (…) parcela no cartão essa gente indigesta (…) Governo estimula e o consumo acontece”. Criolo e seus parceiros criticam o fato de que “O sistema exige perfil de TV” e isso tem lá seus simulacros: “Desculpa se não me apresentei a você / Esse é meu cartão, trabalho no buffet”.
Ainda em “Cartão de Visita” o artista fala das contradições presentes no dia a dia de uma sociedade que não sabe se rejeita ou se quer as pessoas destituídas de poder de consumo: “E se eu não existo, por que cobras de mim?”. Em “Pegue para Ela”, um misto de afrobeat com cordel, de Nigéria com Nordeste brasileiro, de Fela Kuti com Siba Veloso, ele manda um mensageiro dizer à amada que na nossa nave carregada de multidão “Toda cultura vira comércio / É o ponto de degradação”.
Com a participação especial de Juçara Marçal, a música “Fio de Prumo (Padê Onã) evoca os cuidados do outro como liga de saudação: “Dobra a força dos braços que eu vou só”. Criolo desenha seu “Plano de Voo”, com a participação também especial do rapper Neto (Síntese): “Cada coração é um universo e ainda tem que bombar o sangue / De cada mente pensante desse meu país insano”.
Música por música o CD “Convoque seu Buda” vai escrevendo uma crônica da atualidade brasileira, no momento em que o “anzol da direita fez a esquerda virar peixe”. E, na faixa “Esquiva da Esgrima” ele mostra a cara: “É que sou filho de cearense / A caatinga castiga e meu povo tem sangue quente (…) Na bença do Padim Ciço (…) Hoje não tem boca pra se beijar / Não tem alma pra se lavar / Não tem vida pra se viver / Mas tem dinheiro pra se contar (…) É o céu da boca do inferno esperando você”.