Muito além da obesidade
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno3, pág.2
Quinta-feira, 15 de Novembro de 2012 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Tanto quanto nos seus aspectos nutritivos, o valor simbólico dos alimentos segue várias fases da evolução humana. A história da comida teve momentos de grandes impactos, como o intercâmbio de plantas e animais favorecido pelas navegações transoceânicas do século XVI. Foi essa excepcional movimentação marítima que tornou universal, dentre inúmeros outros, o trigo europeu, o milho americano, o arroz asiático e o café africano.
Essa permutação ecológica e cultural criou as condições para a variedade de ofertas de alimentação em todo o mundo. Mas não foi bem isso o que aconteceu. A industrialização nos centros urbanos fez migrar parte significativa da população do campo para a cidade, esvaziando as áreas rurais onde se produziam os alimentos. No século passado (XX), o domínio das corporações criou a ilusão do paladar unificado e da comida massificada, estorvando o potencial da diversidade orgânica.
A preeminência da cultura consumista estadunidense instalou no mundo um padrão de oferta industrial que somente nas últimas décadas começou a ser efetivamente desafiado por organizações da sociedade. A obrigatoriedade de informar nas embalagens dos produtos a presença de insumos que podem ser prejudiciais à saúde, tais como as gorduras trans, a quantidade de sódio, açúcar ou de adoçantes sintéticos, e a indicação de organismos geneticamente modificados (transgênicos) é uma conquista muito recente.
A resistência de muitas empresas que insistem em tentar desrespeitar o consumidor tem gerado uma onda de desconfiança e o aumento da vontade de participar por parte da população. Mudam-se os sentimentos, os significados, os estilos de vida e as atitudes. E é nessa conjuntura que a diretora Estela Renner está lançando o seu segundo documentário sobre o tema. Estive presente na pré-estreia do seu filme Muito Além do Peso (84min, Maria Farinha, 2012), na segunda-feira passada (12) no Ibirapuera, em São Paulo.
O público compareceu. Faltou pouco para lotar os 800 lugares do auditório. Isso demonstra o tamanho do interesse das pessoas pelo debate sobre a obesidade na infância, proposto pelo filme. A produção do evento caprichou. Antes da exibição teve um maravilhoso bufê de frutas e sucos e a fala de Amit Goswami, pesquisador indiano que trabalha a física quântica na relação corpo e mente. Após projetado, o documentário foi discutido no palco com a participação de Frei Betto, do endocrinologista Amélio Godoy, da ativista Ann Cooper e da diretora Estela Renner, com mediação do VJ Cazé Peçanha.
O filme de Estela Renner vai direto ao assunto. Assume o partido da infância e tem êxito na opção pela retórica da revelação. É curioso ver como as famílias obesas ou com filhos obesos se dispuseram a contribuir com a realização dessa obra, relatando experiências da má nutrição assumida por elas. A consciência de que podem servir de antiexemplo denota um quê de altruísmo nessas pessoas. Com isso, a diretora certamente sentiu-se aliviada para expor naturalmente as crianças dos grupos familiares que participaram dos depoimentos. As demais crianças que aparecem em cenas contextuais tiveram cuidadosamente seus rostos embaçados para evitar identificação.
Ao patrocinar Muito Além do Peso, o Instituto Alana oferta para debate uma síntese viva da problemática do escesso de pesoF na atualidade. Por isso, esse documentário é tão importante de ser visto por cidadãos, consumidores, empresários, adultos e crianças. Mesmo que ele mexa com os nervos de algumas empresas citadas, as mais antenadas não deverão reagir frontalmente ao que Estela Renner apresenta como fato inquestionável, sob pena de terem aumento de desgaste nas imagens de suas marcas e produtos. É uma oportunidade de o mundo corporativo reavaliar seu código de ética e de conduta.
Muito Além do Peso é uma peça de utilidade pública. Reflete uma aderência referencial e reverencial aos Estados Unidos. Não faz mal, afinal foram eles mesmos que nos incutiram a ideia de uma sociedade refém do fast-food. A obesidade no Brasil ainda não está no nível de gravidade dos EUA, mas poderá chegar lá, caso não revertamos a taxa crescente de 33,5% de crianças com excesso de peso (obesidade e sobrepeso). Reservei, contudo, os meus vivas e palmas para as cenas e depoimentos incríveis gravadas por Estela Renner e sua equipe.
É impactante a imagem do supermercado flutuante da Nestlè, invadindo as águas amazônicas, todo adesivado com marcas e produtos da multinacional suiça para assediar as comunidades ribeirinhas. Causa impacto também a revelação da menina que adora batata frita, mas diante de uma batata natural arrisca dizer que é uma cebola. As falas são intercaladas por informações e imagens de efeito comparativo rápido, como a colocação lado a lado de produtos alimentícios e de copos contendo a porção de açúcar ou de óleo neles contidos.
Chocante também é o depoimento de uma ex-funcionária do McDonalds que é mãe de uma criança obesa. Ela conta da angústia que tinha ao ver sua filha acima do peso, enquanto trabalhava em uma empresa causadora desse tipo de problema para a sociedade. Declara que pediu demissão por não aguentar mais se sentir como se fosse um traficante de drogas. Outra mãe confessa que tenta convencer o filho de que determinado alimento não é saudável, mas fica sem saber o que dizer quando o argumento do filho é o de que se aquele alimento não fosse saudável ele não apareceria sendo comido por uma criança na televisão.
O filme apregoa que problemas de educação alimentar levam as crianças obesas a uma ameaça de morte prematura, constituindo-se neste caso a primeira geração de meninas e meninos com expectativa de vida menor do que a dos seus pais. O disparate é saber que muitas das crianças que levam frutas para se alimentar no intervalo das aulas as comem escondidas no banheiro, pois se forem vistas podem sofrer discriminação, considerando que, do ponto de vista de quem quer significar alguma coisa de qualquer jeito, os alimentos industrializados são tipificados como símbolos de distinção de poder de consumo.
Depois que as luzes se acendem, a lembrança da sala escura deixa o espectador de Muito Além do Peso sem chance de ficar indiferente. O filme tem a mesma força do documentário Criança, a Alma do Negócio (49min, Maria Farinha, 2008), no qual Estela Renner trata dos efeitos da publicidade no comportamento e nos valores das crianças. É uma espécie de continuidade. Ambos apresentam o viés intrapsíquico das pessoas que são vítimas de suas próprias dificuldades de superarem a condição de obesa, e o viés do indivíduo como parte de uma sociedade doente.
A pressão contra os fatores causadores de obesidade tenderá a aumentar, visto que não tem sentido crianças com trombose, dificuldades respiratórias, hipertensão arterial, aterosclerose, intolerância à glicose, diabetes, distúrbio metabólico e todas as doenças resultantes do limite trágico da obesidade. Sem contar com os problemas ortopédicos, como os psicossociais, tipo ansiedade, depressão e isolamento social, e da busca desnorteada de como encontrar alternativas para escapar do sedentarismo.
Estela Renner trata a obesidade como um problema de saúde pública, sem cair nas armadilhas estéticas do feio e do bonito ou em preceitos morais do tipo certo ou errado. Não é à toa que a parte mais emocionante do filme é quando uma mãe diz que acha o filho bonito de qualquer jeito, gordo ou magro. E afirma que quando se esforça para que ele perca a gordura corporal que tem em demasia é apenas para vê-lo sadio. Eis a dinâmica circular da existência, sinalizando que, na combinação da racionalidade com o instinto, pode estar em curso uma nova revolução na história da comida.