Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno3, pág.3
Quinta-feira, 21 de março de 2013 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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Fixadas em um galpão do centro cultural Sesc Pompéia, em São Paulo, as palavras da arquiteta ítalo-brasileira Lina Bo Bardi (1914 – 1992) adiantam o que eu vivenciaria no espetáculo de lançamento do CD Pelos Trópicos, da compositora e cantora paulistana Andreia Dias, com a participação especial do compositor e cantor cearense Marcos Vitoriano: “O povo virá aqui e terá que se sentir bem com certos dados básicos, que são a solidariedade e a poesia”.

Se, para ela, um espaço torna-se um lugar quando passa a significar alguma coisa, para mim, mais do que um show de lançamento de disco, a festa de Andreia Dias, realizada sexta-feira passada (15/3) na antiga fábrica de tambores dos irmãos Mauser, ressignificada há três décadas por Lina, representa uma boa síntese do lugar social da música no território em movimento da brasilidade. Na banda, a batera de Arthur Kinz, as guitarras de Allen Alencar e Fábio Negrone e o baixo de João Paulo Deogracias.

Andreia Dias passou um ano e meio circulando pelo país, compondo e gravando com artistas e grupos musicais de dez cidades brasileiras. Uma do norte (Belém), uma do sudeste (Rio de Janeiro) e oito do nordeste (São Luís, Fortaleza, Natal, João Pessoa, Recife, Maceió, Aracaju e Salvador). Ao reunir doze composições criadas e gravadas em plena viagem, o álbum realça a proximidade de quereres e fazeres musicais, em que pese a distância geográfica. “Viajando, cantando e compondo / recompondo e decompondo” (Vai e Volta), revela na parceria com o Cabruêra, de João Pessoa, enquanto toca uma escaleta azul, cor do seu vestido, por onde voam pterodátilos.

Os músicos, poetas e compositores visitados por Andreia Dias são de lugares de onde não querem sair, mas também aos quais não querem ficar presos. Cantam e tocam a vida em sua dimensão organizadora e desorganizadora das emoções. “Alguns dias fora / o que fomos dentro?” (Luva Pele), pergunta na composição feita com Zé Cafofinho, de Recife. A resposta está no próprio deslocamento do viver pelas plataformas de sentido por onde a cantora trafegou, sedimentando o que se transformou em Pelos Trópicos.

O caráter de trânsito etnomusical da empreitada sobressai-se pelo exercício da intersubjetividade e pelas obras resultantes do compartilhamento de sentimentos e modos de expressão dos participantes, em cujo sentido de comunidade não prevalece o habitar de um espaço, mas a força de ser de um lugar. “Venha devagar / tudo pode acontecer” (Feliz e Mareado), canta Andreia Dias na abertura do show, propondo respeito ao ambiente de interação e integração em que foi feita essa música de pegada quase juvenil, com Leo Chermont, de Belém, e com Arthur Kunz, seu parceiro há vinte anos.

O que dá contemporaneidade ao comportamento dos coletivos que acolheram Andreia Dias pelo Brasil é um fazer musical que está fora dos padrões das divas, da cultura de massa, da cultura popular de classes e da música folclórica. Embora com porção de tudo isso, essas expressões de Música Plural Brasileira percorrem a lógica da aceitação natural, alheia à busca sangrenta pelo reconhecimento do mercado. “Vamos flanar no agora que é da hora” (Vida Bela), aduz a parceria com a banda Eek, de Maceió.

As faixas de Pelos Trópicos transparecem o diálogo, o aconchego e a experiência de alteridade da música como fator de convivência social. Descrevem essas trocas com o que foi produzido em sinergias e compartilhamentos de apropriações. Todos oferecem algo e todos usufruem de algo, numa experiência de reciprocidade. Como Andréia Dias conta quando canta “Me dá um beijinho / Na minha nuca / Me arrepia / Me põe maluca” (Beijin na Nuca), da carimbolada que compôs com Felipe Cordeiro, de Belém.

A participação do Vitoriano deu um quê especial ao show, por representar bem o perfil dos artistas das novas cenas. Fiquei atrás da plateia presente no Sesc Pompéia, e pude observar a curiosidade das pessoas quando ele cantou “Coração bandoleiro / sempre o primeiro a morrer de amor”, sua parceria com Andreia Dias no projeto. O público notou que tinha um poeta no palco, um semeador de canções existenciais, armado de palavras fortes, mas com inspiração e satisfação de viver.

Vitoriano é um misto de Raul Seixas com Tom Zé e Criolo, no que estes artistas têm de indissociável ao que os novos códigos culturais consideram êxito. Esses traços estéticos estão bem enunciados no seu CD solo, intitulado “Plantando a semente no asfalto quente”, também em situação de lançamento. Lá, ele canta coisas como: “E já não quer mais ficar pendurado no mesmo pescoço / porque um dia o tempo passa / porque um dia a casa cai” (Liga a TV e Chora); “Fantasmas velozes me perseguem enquanto corro / Enquanto morro no meu carro em plena luz do dia” (Melancolia); e “Ainda tem mas tá faltando / Um pouco de tutano / Ainda tem mas tá acabando / E o tempo vai passando” (O tutano e o tempo).

O exemplo de Vitoriano mostra que não são necessariamente os lugares por onde Andreia Dias passou que determinam a força do seu projeto, mas o trajeto e suas revelações. Com esse recurso integrador e de transbordo, a articulação das práticas musicais múltiplas transpõe as fronteiras do local, no que há de controle político dos palcos, dos cachês, dos editais, dos patrocínios e da má influência de algumas velhas raposas do meio musical que rondam os pintos no galinheiro. Quando ela canta “Se eu aprendo a voar serei meu avião” (Terra do Nunca), parceria com a banda Talma&Gadelha, de Natal, sugere uma drenagem nessa arte de subsistência, dinamizando o giro possível das relações.

Cada cidade, cada ponto, experienciado por Andreia Dias, não é somente um espaço, mas um lugar entendido como entroncamento de produção e circulação de música. Sua viagem não é uma viagem de distâncias, mas de proximidades. Por isso, não pode ser medida em quilômetros, mas em permutabilidade e energia presencial. Seus parceiros não precisaram se locomover para seus lugares entrarem em movimento. Isso desconstrói o senso do lá e do cá, em um desenho não geométrico de conversação do longe e do perto, como uma roda de cumplicidade.

Uma produção em movimento é o gozo do encontro, da descoberta, da contra-história e da inventividade sem pretensões de domínio. “Teu olhar tem manjar de coco” (Brisa Tropicana), diz a toada de boto que ela compôs com a dupla Criolina, de São Luís, celebrando o processo interpretativo, fruto das interações do conhecer-se, conhecendo e se dando a conhecer. Com uma cuíca nas mãos, ela funda seus andares, cantando “Pelos trópicos / passos firmes marcados / no compasso desse tempo” (Pelos Trópicos), da parceria com a Baiana System, de Salvador.

O que mais me impressiona nesse trabalho de Andreia Dias é que, entre tantas formas de ser, de viver, de querer e de se expressar, ela conseguiu construir o significado de Pelos Trópicos por meio de um processo interpretativo, sem perder as suas características e sem forçar um ponto de vista paulistano. O leque de heterogeneidades vai da atualização de antiga gíria em “Eu não me acho / Me tenho certeza” (Xuxu Beleza), na parceria com a banda Do Amor, do Rio de Janeiro, até o brega-pop de “Aquilo que era segredo de Estado / não era para cair em seus ouvidos” (Aquilo), composta com a banda The Baggios, de Aracaju.

Em geral, Pelos Trópicos congrega significados e perspectivas do estar juntos, atitude que caracteriza bem uma das tendências do momento atual da música brasileira. Só achei um tanto deslocado o título, a capa e o encarte, postos em linha reflexa com a arte pau-brasil dos modernistas, o chapéu de frutas da Carmen Miranda e o psicodelismo tropicalista. As helicônias, mangueiras, palmeiras, pássaros, mares, sorrisos, olhares, sombra e água fresca a que Andreia Dias destaca nos agradecimentos, certamente oferecem novas combinações de cores e novos elementos gráficos à organicidade sonora dos nossos territórios em movimento.