Aprendi no sertão onde nasci que a vida tem trilha sonora. As pessoas, fossem vaqueiras, agricultoras, comerciantes, durante a labuta ou depois dela, tocavam viola, tiravam versos e contavam histórias. Tudo parecia ter um pouco da poética de cantar a complexidade da vida simples, o sentimento sentido, a audição que escuta, os cheiros que cheiram e os sabores de saberes culturais e naturais.
Minha mãe conta que, quando era menina, o pai dela e toda a família costumavam sentar à calçada no fim do dia para tocar violão. Meu pai dizia que na fazenda onde ele viveu a juventude havia um reduto quilombola que era conhecido pela animação de batuques, sambas e forrobodós de rabecas.
Nos dias de feira eu ia ajudar o meu avô na bodega e cuidava do fornecimento de cantadores, violeiros e cordelistas que se apresentavam na praça do mercado. Aquilo jorrava musicalidade deleitável para mim como uma fonte inesgotável das circunstâncias a transcender o cotidiano.
A vida era cantada em cantos vindos de muitos mundos nas fantásticas viagens da cultura. O eco que me chegava ressoava no tempo desde as feiras do Oriente pré-islâmico, as comunidades beduínas, as trilhas dos ciganos e as sonoridades das gentes nativas e nômades que tinham o costume de fazer música de cabeça.
Essa convivência me levou a gostar também de inventar música, como brincadeira de viver, gesto de entrega ao prazer das tramas que vibram em nosso senso poético-musical intuitivo, como se mexem as folhas e os galhos das árvores ao sabor dos ventos.
Na cultura em que me formei, a música faz parte da experiência. Isso está explícito no que produzo de literatura para infância e cidadania orgânica, campos de sentido determinantes do meu trabalho. Nesse percurso, tenho tido a alegria de ter parceiros capazes de agregar consistência aos sentimentos e emoções dessa narrativa.
Parte significativa dos meus livros tem trilha musical integrada. E cada qual tem o seu intérprete: Flor de Maravilha (Olga Ribeiro), Toinzinho e Socorro / Missa Sanfonada (Aparecida Silvino), Benedito Bacurau (Antônio Nóbrega), A Festa do Saci (Giana Viscardi, Suzana Salles e Marcelo Pretto), A Casa do Meu Melhor Amigo (Lucas Espíndola e Rodolfo Rodrigues), Se Você Fosse um Saci (Valerie Mesquita), Invocado (Banda Dona Zefinha) e Bulbrax (ILYA).
Ao organizar as ilustrações musicais que fazem parte desses livros, a fim de disponibilizá-las em plataformas de streaming, dei-me conta de que todos os momentos do meu viver e das minhas reflexões foram musicados. Nos dez álbuns e nos três singles que podem ser ouvidos no Spotify, Deezer e Apple Music, encontram-se as composições que surgiram com o texto literário e outras feitas para dar de presente.
Essa produção musical, que normalmente era veiculada apenas dentro de livros e tinha uma expressiva penetração no universo por onde orbita a literatura, agora está nas nuvens digitais, disponível em todos os continentes aos que buscam pela autêntica música independente.
Tem sido curioso e quase uma diversão para mim poder acompanhar os relatórios que demonstram o interesse de estadunidenses, canadenses, europeus, escandinavos, australianos, hispano-americanos e brasileiros de vários estados pelo enredo sonoro dos meus livros. Isso tem me dado uma renovada e agradável sensação de brincar na feira.