Na democracia de mortos-vivos
Artigo publicado no Jornal O POVO, Caderno Vida & Arte, pág.4
Quarta-feira, 15 de abril de 2015 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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FAC-SÍMILE

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O impeachment da presidenta Dilma já aconteceu; um impeachment branco, deliberado pelo legislativo, sem a formal destituição do cargo, mas aconteceu. Tudo com a anuência dos partidos políticos aliados e alijados. Diante deste fato inusitado parece estranho que ainda haja tanta gente bradando um “fora” tardio à mandatária reeleita.

Essa atitude, que poderia ser de consciência cidadã, começa a se revelar uma angústia existencial de parte da população apavorada com a chegada dos consumidores oriundos das classes desfavorecidas. Parece haver um pavor de que a comida não dê para todos, que nas ruas não caibam os carros de todo mundo, que as vagas nas universidades públicas fiquem congestionadas e outros que tais.

Nas ruas e nas infovias as manifestações respondem residualmente a esse medo de dividir, aos avanços da alteridade étnica e à intensificação da participação política por quem antes só tinha o direito de saber que não tinha direito. A agressividade expressa desejos inconscientes de amassar o crânio dos semelhantes, antes de ser mordido por eles e de passar a sofrer com os efeitos catatônicos da convivência.

O temor como gerador de fobias sociais acontece quando, diferentemente dos animais, passamos a fugir por medo e não para nos livrarmos dele. Em seu livro “Quatro gigantes da alma” (José Olympio, RJ, 1982), o médico e psiquiatra cubano Mira y López (1896 – 1964) explica como esse tipo de receio se dá através de uma cadeia de associações. “O que realmente assusta o indivíduo fóbico não é o objeto ou o seu conteúdo, porém, o desejo ou a ação que este simboliza” (p.54).

Possuído por um mecanismo fobígeno, o obscuro tecido psicológico indutor dessa estratégia de conduta cumpre uma missão imediatamente defensiva, pois une grupos por afinidades de egoísmo social para o enfrentamento do que consideram cadáveres desengonçados em trânsito pelos shoppings e redes sociais. A aversão é um inimigo anímico que tem a força de bloquear o pensamento lógico.

Mira y López dizia que uma das formas de surgimento do medo é a presunção analógica, criadora de fobias referentes ao que é identificado como ameaça. No caso das pessoas que temem serem mordidas por mortos-vivos, não lhes passa pela cabeça que o seu fracasso possa estar na adoção de estilos de vida insustentáveis, pelos quais tanto se empenham.

Em uma situação de grandeza, no lugar de se perceberem em um país dominado por zumbis, os mais privilegiados deveriam se sentir orgulhosos por poderem compartilhar equilibradamente das riquezas naturais, culturais e econômicas disponíveis. Mas não, tanto os que não se enquadram em seus espelhos quanto os que querem se enxergar neles são rejeitados da mesma maneira.

As manifestações desses grupos se dão por camadas de apavoramento e negação. Não é à toa que nas últimas décadas cresceu a audiência de filmes sobre zumbis, a exemplo da série estadunidense “The Walking Dead”, desenvolvida pelo produtor francês Frank Darabont, com sua tosca histeria social contra ameaças de mordidas contagiosas de mortos-vivos.

A sessão zumbi da democracia brasileira tem em duas obras de referência do cinema de terror suas metáforas mais horripilantes: as histórias do ser criado pelo doutor Victor Frankestein, derivadas da novela da escritora britânica Mary Shelley (1797 – 1851); e os contos do conde Drácula, que se multiplicaram após a divulgação do romance do escritor irlandês Bram Stoker (1847 – 1912).

O Frankestein do PT é um cidadão feito de pedaços de desejos e necessidades reprimidas, costurados por uma linha que se pretendia sensível à ética e à moralidade, que foi abandonado à própria sorte, órfão de uma novela de horizontes confusos. O Drácula do PSDB é um sedutor de arrogância aristocrática e letrada, acostumado ao gozo exclusivo do sangue farto das desigualdades instaladas no país há mais de cinco séculos.

Enquanto o Frankestein e o Drácula permanecem em cartaz no festival de filme B do atual momento da política brasileira, o PMDB assume o banco de sangue da Câmara Federal, os estoques de soro do Senado e as seringas descartáveis da articulação política do governo federal. Esse tipo de monstro gótico de três cabeças é tão extraordinário que nem a ficção foi ainda capaz de inventá-lo em toda a sua obsessão mórbida pelo poder.

Dois grandes momentos da história recente brasileira produziram bases para avanços com equilíbrio na nossa democracia, pelo caráter apaziguador de conflitos presente na essência de cada um: as conquistas sociais incluídas na Constituição de 1988, que relativizou o poder, e as conquistas econômicas populares atendidas pelos recentes programas de redistribuição de renda.

O desafio atual é o da conciliação, como um ato de coragem fundado na compreensão das causas dos estímulos fóbicos. Os estudos de Mira y López mostram que “esse medo produzido pela impressão do real (…) é, às vezes, completamente insuportável, porque não tem um objeto que, ao fixá-lo, o justifique” (p.21). Bom seria se algumas pessoas parassem de se assustar com a própria crença de que lhes falta algo que na realidade já têm.