Na Dinamarca de Andersen e da Lego
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno3, pág.2
Quinta-feira, 16 de Agosto de 2012 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Fui com a minha família à Dinamarca com a intenção de celebrar a infância dos nossos filhos, o Lucas com 13 anos e o Artur com 11. Queríamos vivenciar com eles um lugar com reconhecida experiência de civilidade e que essa experiência tivesse base no lúdico, como essência do humano. Assim, fizemos de carro alugado um corte horizontal de leste a oeste no mapa dinamarquês, cruzando cenários maravilhosos, numa viagem que durou do dia 30 de julho ao dia seis deste mês de agosto, nas três principais regiões do país: as ilhas de Sjaelland e Fyn e a península de Jutlândia.
Embora tenhamos feito paradas rápidas em lugares como Roskilde, para conhecer a cidade do rock, ver o museu de barcos vikings (Vikingskibhallen), com embarcações dos séculos X e XI, e visitar a catedral gótica de tijolinhos vermelhos, onde estão enterrados os reis e as rainhas da Dinamarca desde a Idade Média, nos concentramos na capital Copenhagen (Sjaelland), em Odense (Fyn), a cidade natal do escritor Hans Christian Andersen (1805 – 1875), e em Billund (Jutlândia), onde nasceu a indústria da Lego e onde está localizada a sua fábrica sede, o hotel e o parque Legoland.
Copenhagen é uma cidade na qual dá gosto pedalar. As ciclovias têm paralelepípedo duplo, com separação da calçada de pedestres e da via de automóveis. Circulamos de bicicleta por quase toda a cidade, desde a estátua da Pequena Sereia, em um canal de mar (Langelinje) até o bairro Nørrebro, onde fica o cemitério em que está sepultado o corpo de Andersen, passando por Nyhaun, antigo porto transformado em área de turismo, com restaurantes e saídas para passeios de barco, onde Andersen morou durante vários períodos de sua vida, inclusive quando se mudou para a capital com 14 anos.
É uma cidade muito bonita, agradável, movimentada, com uma arquitetura espetacular, na qual se destacam prédios como o “diamento negro” da Biblioteca Real (Kongelige Bibliotek) e a Casa da Ópera (Operaen). O respeito às áreas públicas é uma marca que se soma ao seu caráter de importante centro urbano, com pouco mais de meio milhão de habitantes (próximo de dois milhões na região metropolitana). Nela, é comum a presença de lojas da Lego e de espaços com a figura e a obra de Andersen. Bem em frente ao Tivoli, um dos parques temáticos mais antigos do mundo, há uma grande estátua do escritor. Encontramos crianças brincando com lego até na visita que fizemos à reserva Christiania, uma antiga área militar de 30 hectares, ocupada pelos hippies em 1971, que tem autonomia econômica, regras próprias.
Na estrada de Copenhagen para Odense passamos por duas pontes, uma delas (Storebæltsbroen) com 18 quilômetros de extensão, com torres de energia eólica construídas dentro do mar. Odense é a terceira maior cidade da Dinamarca. Seu nome é uma homenagem a Odin, um dos principais deuses da mitologia nórdica, o pai do poderoso Thor. O dia estava chuvoso e chegamos a cidade contemplados por um belo arco-íris, como se entrássemos no temperamento poético de um conto de Andersen. Adoramos a cidade, sobretudo a Casa de Andersen (H. C. Andersens Hus), o museu, o lago e a grama que a circunda, onde assistimos um teatro de histórias do célebre autor.
Andersen conseguiu com sua ampla e consistente obra entrar para a galeria dos escritores mais importantes de todos os tempos. Autor de 156 contos que se tornaram clássicos por encantar crianças e adultos e que foram traduzidos em 160 idiomas diferentes, dentre eles, A Pequena Sereia, O Soldadinho de Chumbo, O Patinho Feio, O Pequeno Polegar, O Rouxinol do Imperador. Vimos em sua casa-museu, que ele escreveu 14 novelas, uma 50 obras dramáticas, cerca de mil poemas, além de biografias (inclusive a autobiografia O conto da minha vida), artigos e pequenas peças humorísticas.
O museu de Andersen foi inaugurado em 1908, na casa em que o escritor nasceu. Em mais de um século passou por muitas ampliações e hoje é um lugar com espaço de referência cultural e turística da Dinamarca. Andersen viveu sua infância naquela casa em uma época em que o rei era a lei, quando a maioria dos dinamarqueses era pobre e analfabeta, numa Europa sofrida pelos efeitos das guerras. Ele enfrentou tudo isso produzindo uma literatura de desconstrução do materialismo, com humor poético e caricatural, em favor dos mais humildes, dos mais humilhados e mais injustiçados.
Como pessoa, pode-se dizer que ele foi o próprio patinho feio, aquele personagem que um dia descobriu ser um lindo cisne, depois de amargar o preconceito resultante da circunstância de ter sido chocado por uma pata. Andersen era grandão (tinha 1,85m), nariz enorme, olhos fundos e papudos, totalmente fora dos ideais de beleza tradicionais. Mas com o êxito internacional da sua obra, foi convidado para almoçar com o rei da Dinamarca, com a rainha da Inglaterra e a ser paparicado pela nobreza européia, passando a ser visto de perto, com seu verdadeiro rosto, cheio de vida, de olhar sem malícia, e com sua figura altiva e elegante.
De Odense, na ilha de Fyn, tocamos o carro para a península de Jutlândia, onde fica Billund, a cidade onde foi fundada e onde está a sede da Lego, a mais admirável indústria de brinquedos do mundo. A Lego é uma empresa símbolo do respeito à criança, da inovação e da capacidade de se reinventar. No jogo da competição tem feito alianças com outras organizações e marcas respeitáveis, como a Toyota (em atividades no parque), a Nitendo (no desenvolvimento de robôs) e com o diretor George Lucas, na transformação em brinquedo dos temas e personagens da série Star Wars.
Os brinquedos da Lego inspiram as crianças, tornando-se universais por falar a linguagem da infância, que é o brincar e a brincadeira. Mesmo utilizando antigos bloquinhos de construção não são brinquedos do passado; mas brinquedos para a criança que vem de longe em cada um de nós e que tem no passado um valor a agregar ao presente. Essa filosofia é visível também no arborizado parque Legoland, onde tudo é integrado e espaçoso, com o funcionamento das cidades em miniatura, das ofertas de diversão e suas montanhas-russas. No meio de tudo, uma estátua de Andersen com um livro e uma criança, em um banco de praça, onde sentamos para fazer fotos.
A hospedagem no hotel Legoland deixa a meninada enlouquecida. As instalações são temáticas e há uma ponte de acesso direto ao parque. O hotel é todo pensado para a infância, com áreas de jogos, panelões cheios de peças de lego para montagem a qualquer hora, zonas de videogames de lego e decoração com temas dos brinquedos. Tudo bem harmonizado com obras de arte. É impressionante o cuidado com os detalhes. No restaurante, os alimentos estão ao alcance das crianças em mesas baixinhas facilmente acessíveis.
Essa história toda começou em 1916, quando Ole Kirk Kristiansen, o fundador da Lego, comprou uma oficina de construção de casas e móveis de madeira e colocou na parede a seguinte frase: “Só o melhor é suficiente”. Queria que os funcionários não esquecessem nunca a importância da qualidade no que faziam. E ainda hoje esta é a mensagem motivadora da Lego. Digo isso porque temos em casa vários brinquedos com muitas e variadas peças e nunca tivemos que reclamar porque faltou um só bloquinho para a montagem do que está prometido na embalagem.
A Lego é uma empresa familiar que já está na terceira geração. Por conta da grande depressão européia no início do século passado, em 1932 o fundador decidiu deixar de fazer casas e móveis e passou a orientar a carpintaria para a produção de brinquedos de madeira: ioiô, carrinhos, tratores, trens, aves e animais, blocos de madeira com números e letras e, inclusive, um boneco de madeira de H. C. Andersen, montado em um animal com rodinhas. Dois anos depois criou a marca Lego, a partir da expressão “LEg GOdt”, que significa “brinque bem”.
A segunda geração assumiu em 1954, quando a fábrica já produzia os bloquinhos de encaixe com injeção de plástico. O filho de Ole, Godtfred, organizou a filosofia da empresa em dez princípios, algo como: 1) brincar com ilimitadas possibilidades; 2) para meninas e meninos; 3) entusiasmar todas as idades; 4) para brincar o ano todo; 5) saudável e sem fazer barulho; 6) brincadeira que não se esgota; 7) imaginação, criatividade e desenvolvimento; 8) cada novo produto deve multiplicar o valor da brincadeira; 9) brinquedos contextualizados; 10) segurança e qualidade. A partir de 1979, Kjeld, neto do fundador, assume a presidência e a Lego passa a desenvolver brinquedos com linhas para faixas etárias específicas.