Na instabilidade da luz e da cor
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno3, pág.3
Quinta-feira, 26 de Julho de 2012 – Fortaleza, Ceará, Brasil
A minha agenda de trabalho em São Paulo estava pressionada na semana passada, mas na sexta-feira (20) dei um jeito de pegar um táxi e ir desfrutar por alguns momentos da experiência de investigação da potência das cores e da luz desenvolvida há cinco décadas pelo artista plástico venezuelano Carlos Cruz-Diez. As salas da Pinacoteca que abrigaram a exposição “Cor no tempo e espaço” estavam em inquietante atmosfera cromática, resultante da presença de um conjunto de cento e tantas obras a contar a trajetória conceitual e técnica do seu autor.
Cruz-Diez (1923) é um comunicador visual que nunca mediu esforços para que o seu trabalho interferisse na reflexão plástica das pessoas. Senti o efeito dessa intenção logo que retornei à rua e comecei a achar que os prédios não pareciam os mesmos que eu havia visto antes de entrar na Pinacoteca. Cada filete de alvenaria cedia ao meu olhar a autonomia da composição da cor, da luz e da sombra. De dentro do táxi em movimento era a cidade que se movimentava, sem sair do lugar.
Foi para chamar a atenção do quanto o nosso deslocamento é responsável pela existência das cores como as vemos, que ele tanto procurou demonstrar que, mais do que pigmentos aplicados a superfícies, a cor é uma circunstância derivada da ambiguidade da projeção da luz, em permanente estado de mutação. Por sua característica interativa, a obra de Carlos Cruz-Diez oferece a quem se dispõe a apreciá-la um manancial de eventos que partem da luz e da angulação do olhar para libertar a cor do domínio exclusivo da matéria.
A retrospectiva apresentada na Pinacoteca paulista começa com a mostra de telas figurativas pintadas a óleo na década de 1940, tal como a bela pintura dos empinadores de papagaios verdes, e se estende até uma instalação mais recente, da década de 2000, com a qual o artista desconstrói os volumes em cores. Essa cromointerferência, que envolve inclusive os corpos dos observadores, é feita com a projeção cruzada de faixas das cores azul e amarela (se não me engano) em uma sala branca, onde balões também brancos e pendurados no teto se agitam perdendo as linhas de contorno.
O passeio por cada uma das salas revela como a estrutura expositiva contribuiu para facilitar a nossa compreensão do discurso do design e pintor, posto em prática nos campos da radiação das cores, do comprimento de onda cromática e de toda a migração que ele fez da pintura de realismo social para o aprofundamento nos estudos de luz e percepção. O controle meticuloso das superfícies e sua relação com o ponto de olho do espectador vai nos desacomodando do senso comum pelo respeito à subjetividade do nosso olhar.
As vitrines com esboços de criações sobre papel, o preto e branco das gravuras e dos desenhos de ilusão de ótica, as composições geométricas abstratas, os painéis multicores em constante transformação, os ambientes cromatizados, as ondulações dos tons, as mandalas em efeito de vibração de retículas, os documentários em vídeo sobre o seu processo de trabalho, as máquinas e ferramentas inventadas por ele para dar precisão às canaletas de alumínio e o corte das lâminas de papelão e algumas maquetes de edificações vestidas de retalhos de cores, como os silos miméticos de um moinho de trigo, produzem uma emoção estética a reforçar a posição do observador diante da obra.
Há momentos na exposição “Cor no tempo e espaço” que vemos cores que não existem, mas as vemos; logo existem. São cores geradas pela proximidade de outras cores na fertilidade da luz e do olhar. No lugar de algo fixo, dependente de suporte, um organismo que ganha vida na realidade da luz, vibrando, flutuando e dialogando com o nosso plano sensorial bem além dos sentidos. Para mim, esse foi um encontro de comportamentos entre a minha percepção e a atitude da cor.
Por possibilitar que a cor seja vista como detentora de uma realidade própria e por colocar o entendimento do que chamamos de cor na dimensão dos tons e do movimento, o trabalho de Cruz-Diez transita na atemporalidade da aparição e da desaparição. Ao longo dos anos ele foi dando provas disso em investigações sobre a instabilidade da luz e da cor, isolando uma daqui, aproveitando a complementaridade de outra acolá, colocando filtros refletores de um lado e induzindo condições de visibilidade por outro. E foi categorizando isso como cromosaturação, transcromia, cromointerferência, fisicromia, e desenvolvendo fases conceituais e tecnológicas de induções cromáticas e cromoscopia, para atingir o estágio maturidade que alcançou na fenomenologia ótica da cor.
Dono de um estilo visual que o destacou como um dos mais importantes artistas plásticos da América latina, Carlos Cruz-Diez é um artista gráfico e pintor que saiu das galerias para os logradouros públicos. O sistema de hastes coloridas (fisicromia), criado por ele para possibilitar frequências cromáticas em superfícies e, assim, expressar a vida própria das cores, destaca-se como arte em prédios, corredores e calçadas de grandes cidades do mundo. Para tornar-se uma referência internacional também em intervenções de arquitetura e urbanismo, conquistadas por sua forma peculiar de tratar a cor, a luz e o movimento em variadas situações de condições culturais e climáticas, Cruz-Diez acreditou na essência participativa das cores.