Nas ruas com Daniel Medina
Artigo publicado no Jornal O POVO, Caderno Vida & Arte, pág.4
Quarta-feira, 03 de fevereiro de 2016 – Fortaleza, Ceará, Brasil
FAC-SÍMILE
No dia em que ouvi “Nós Ao Vivo”, música de divulgação do trabalho do compositor, ator e cantor cearense Daniel Medina, me veio à cabeça um punhado de sentimentos sobre os ideais de liberdade, democracia e segurança no cotidiano citadino tão pressionado como destino desconfortável por inconsequentes e variadas pregações pânicas.
Essa composição tem a força de atrair pessoas a saírem de casa, a curtirem a espontaneidade das ruas e a terem mais interesse pelo mundo circundante. Quando o artista canta “Já que chegamos/E estamos aqui”, ele dá o sinal de que essa conquista não pode ficar aquém do seu significado transformador: “Apesar dos perigos / Nós estamos vivos / Nós ao vivo / Inventando moda”.
Com arranjo inquietante, sonoridade arranhada, amalgamada de pop e bendito, em clima de zona sem lei, “Nós Ao Vivo” convida para as relações presenciais em tempos de tendências ao afastamento do convívio social. E ele canta “Apesar das paredes / Nossa voz avança / Nossa dança / Faz-se em praça aberta”, levando a crer ser preciso ocupar os espaços públicos, mesmo indo de encontro aos defensores da indissolubilidade do medo.
O caráter de desobediência da arte aos aparelhos utilizados para a promoção de manipulações psíquicas, a fim de sugestionar as pessoas a aceitarem a condição de serem paradoxalmente lideradas politicamente pela ausência de líderes políticos, é assumido em versos de “Vai à rua, vai a Roma / Testa as portas, faz a festa”. Medina nos encoraja a negar as coações ocultas porque seu canto é o canto dos que acreditam no viver como algo prazeroso.
Na condição de observador sensível, poeta fecundo e de experimentador despojado, ele chamou um grupo de crianças para dar o tom de quem olha o mundo amando ante o ceticismo dos desapontados com a vida urbana. A gravação ganhou muito com a afirmação em voz infantil de que “Apesar dos pesares / Pluma que se preza voa leve”, deixando de lado a tautologia de que nada nem ninguém presta.
O princípio retórico de “Nós Ao Vivo” é espalhar a compreensão de que não temer a proliferação programática da insegurança pode funcionar como contraponto à farsa da hostilidade aberta: “Apesar dos peritos / Destes mortos vivos – Nós ao vivo / Inventando trovas / Não me espere, nos aguarde”. Eis a negativa do artista frente à insistência conservadora em favor de uma sociedade modelada para ter receios de si mesma.
A cada audição que faço dessa obra, além de me deleitar com a sua qualidade literomusical, sua estrutura, sua progressão de acordes e interpretação, percebo ofertas de novas significações desafiando a realidade carcomida pelos egotistas, pelos que só pensam em si, os que apostam na precariedade social como se vivêssemos em um ponto de degradação sem retorno.
O autor ironiza a estandardização das vulnerabilidades ao insinuar que, “Apesar dos artistas, apesar dos estetas / Apesar da poesia, apesar das ciências”, a cidade foi feita para a liberdade, e não para vivermos reféns de fobias otimizadas. “Nós Ao Vivo” está cheia dessas nuanças definidoras de outros sentidos; particularidade presente no trabalho autoral de Daniel Medina, e que faz desse artista um dos estilos mais integrais e múltiplos da nossa cena musical.