Nice no reino do encanto
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno3, pág.2
Quinta-feira, 18 de abril de 2013 – Fortaleza, Ceará, Brasil 

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O mundo do encanto tem elementos do real, mas não se limita ao que é concreto; tem componentes da fantasia, mas não é ilusão. Foi zanzando por esse mundo fundado na força de intervenção do imaginário que conheci a mais que admirável Maria de Castro Firmeza (1921 – 2013), a pintora Nice. Nos últimos 35 anos tive o privilégio de ser um dos seus amigos próximos e, nessa condição, desfrutar do seu jardim, da sua culinária, das suas histórias, do seu afeto e da sua arte de viver.

O reino do encanto da Nice não poderia ser um lugar, pois reino aqui tem o sentido de esfera sensorial, na qual convivem a arqueologia memorial e a intimidade com o tempo presente. Mas como ambiente de atração poético-existencial pôde ter uma estação orbital, construída ao lado do também querido Estrigas, formada pela dona Anita, pelo cachorro Camões e por toda sorte de frequentadores do sítio-museu e recanto ecológico do casal, que apelidei de anticlube lírico do Mondubim.

Em seu trânsito pelo reino do encanto, Nice não pintava o que via; pintava o que imaginava, a partir do que via. Ela encontrou um jeito de narrar sua percepção, fazendo anotações em quadros e blusas como um diário de linguagem de cores deslumbrantes. As visões ancoradas no seu mundo interior, que viraram pinturas com tintas e linhas, não se limitavam a imagens do inconsciente, nem a recordações da sua rica vivência cultural. A arte na Nice aflorava da oralidade imagética em fruição dialógica e relacional.

Na esfera de vivências da Nice não existem figuras que aceitam ficar presas a suportes e molduras. Mesmo quando postas em quadros e fixadas em roupas, elas parecem compreender o que falamos e ver o que fazemos, participando da cena em que eventualmente as levamos conosco. Da mesma maneira que ela fala por meio de sua arte, com cada pintura, em tinta ou linha, tornando-se um elogio ao dizer, suas obras também estão atentas a nós, como representação do inesperado.

Nice Firmeza nasceu com uma estrela dentro da alma, decidida a iluminar a realidade comum, tornando radiante o cotidiano. Assim sendo, ela estava a todo instante pronta para fortalecer o tônus muscular da imaginação, como modo de libertação dos ditames da rotina e do destino. No Reino do Encanto, a boa fortuna não é uma questão de soluções mágicas, mas de elevação do sentido estético do destino.

É fascinante pensar em uma pessoa nutrida na liberdade de viver no reino do encanto, esse lugar de mente livre, onde o tempo e o espaço, o si e o outro são relativizados e movidos por possibilidades de experiências, que transcendem a noção de território e de propriedade. Tudo no reino do encanto é evento descolado do mundo ordinário, mas não fora dele. O que está encantado é passível de relação sólida, sem lugar para o domínio da ilusão. Sua matéria prima é o poder criativo e a sabedoria do espírito leve e disponível.

A movimentação da Nice Firmeza pela intimidade do mundo natural a deixava livre para realçar cores e formas, como um mapa de caça ao tesouro, feito de rabiscos do que há de mais sagrado no humano, que é a pureza da consciência. Na cartografia do reino do encanto, com suas pistas para vivências artísticas e relacionais e sua senha para o portal das maravilhas, a essência secreta da luz explode nas pinceladas e pontos de linha dados pela Nice, na busca ornamental dos mistérios do mundo.

Volto a afirmar que a Nice pintava o que imaginava do que via, para dizer que ela paria imagens e essas imagens povoavam suas obras. Cada obra da Nice é filha de um fluxo perceptivo de ritmo agitado e de um volume transbordante, que as conceberam no campo fértil da arte. Eram conversas internas escapando por meio de pigmentos de tintas e variedades cromáticas das linhas de bordar. No mundo interior da Nice, habitado por arquétipos da cultura oral e da natureza, não há definições de final. Nele, nada e ninguém recebe o rótulo de feliz ou infeliz.

No reino do encanto da Nice existe uma forte inspiração da cultura de coletividade, na arte de rua e encenação dos desafios humanos. Ressoa em mim o canto da Nau Catarineta, que ela gostava de entoar, como síntese lírica do romanceiro popular, ardente e presente em seu coração, nas suas lembranças das noites de reisado, na meninice brincante do interior e no vagar da mente navegante que se deixa guiar pelas virtudes divinas: “Sete anos e um dia / Oh! tolinda / Por sobre as ondas do mar”. Toda vez que a ouvi cantando os versos da Nau Catarineta tive a impressão de que ela navegava por onde não dava para a vista alcançar.

E tudo isso acabava contado em sua pintura de característica naïf. A obra de Nice tem a delicadeza das flores de Andre Bauchant (1873-1958), o artista francês que, antes de ser pintor trabalhou como jardineiro; a magia das flores e do sol do croata Ivan Rabuzin (1921 – 2008), o jeito bonito de achar o mundo bonito da estadunidense Grandma Moses (1860 – 1961) e a fluorescência da flora da paulista Iracema Arditi (1924 – 2006). A obra de Nice tem a força da universalidade emergida da sua Aracati, assim como a arte do pintor polonês Nikifor (1895 – 1968) expressa os impulsos culturais da sua Krynica, e tem muitas crianças em diversão, como nas telas da baiana Helena C. Rodrigues.

A relação com a infância é uma particularidade na história da Nice. Pelos caminhos do reino do encanto ela foi uma apaixonante educadora. Dava aula de pintura para meninas e meninos, deixando com cada criança a liberdade de assumir o que e como queria desenhar. Nada de explicações articuladas, nada de pedir apreensão das coisas com seus contornos lógicos e morfológicos. Em suas aulas, todos podiam violar as noções do verdadeiro. A pintura fazia parte de exercícios de oralidade visual e da familiaridade com o lúdico, em situações e movimentos somáticos, dando expressão ao sentimento. Seus alunos aprendiam a pintar acontecimentos e não coisas, temas e não objetos.

Talvez a principal característica do método Nice de educar tenha sido a arte de cativar pela alteridade e pelo respeito às diversas maneiras de operação da criatividade, pormenorizada na grandeza da cultura da infância. Ela acolhia o que era pintado, dando relevância às mensagens narradas em rabiscos, traços e manchas de cores. Lembro-me da Nice contando da vez em que uma mãe a procurou horrorizada porque a filha tinha pintado um céu vermelho e isso poderia significar algum distúrbio psicológico. Com o carisma que lhe era peculiar, ela contornou facilmente a situação apenas perguntado simplesmente se aquela mãe nunca tinha visto um por do sol.

Esse método da naturalidade cativante era aplicado também nas aulas de bordado que Nice dava para as amigas. Ela fazia isso com tanta espontaneidade, que sequer riscava o tecido antes de pintar com linha. Foi assim que certa vez bordou todo o pano de uma blusa com girassóis, numa homenagem ao célebre pintor holandês Vincent van Gogh (1853 – 1890). Das tantas peças que bordou, essa era a que ela mais gostava. E foi vestida com essa blusa que Nice foi sepultada. No seu velório, muitos de nós que temos blusas bordadas por ela, estávamos também vestidos de Nice, a pintora da infância, da natureza e do reino do encanto.

EM TEMPO:
A Missa de 7º Dia do falecimento de Nice será realizada amanhã (19/04/2013), às 19 horas, na Igreja de Nossa Senhora dos Remédios (Av. da Universidade, 2974 – Benfica).