Nunca fiz análise. Certamente tive motivos, mas não senti vontade. Acontece que estou achando um tanto exagerada a forma como tenho reagido à turnê de despedida de Milton Nascimento (79). O esforço para cantar, a mão tremendo, a cadeira no palco, não sei, algo me diz que ele não deveria estar fazendo essa “Última Sessão de Música”.
Toda vez que vejo menções a esses shows, desvio o meu olhar como gesto de negação. Ajo assim, mesmo compreendendo a justificativa dada pelo cantor de que está fazendo isso como uma forma de homenagear fãs ao fechar o ciclo de sua longa estrada musical. Resolvi, então, tentar me livrar desse incômodo escrevendo esta crônica-terapia.
Dos artistas que contribuíram intensamente para a formação das minhas preferências musicais, o Milton Nascimento foi o único com o qual tive uma relação de ídolo. Colecionava seus discos e usava camisetas que eu mesmo pintava com a silhueta do rosto e do chapéu do artista. Milton mexeu muito com as minhas emoções de estudante.
A minha intensa admiração por Milton Nascimento nasceu com a sua arte-ofertório, que reunia seres, lugares e construções de destinos. Encontro as essências dessa obra em muito do que me tornei. “No sertão da minha terra…” (Morro Velho), “Nasci num rio qualquer / Meu nome é rio” (Pablo), “Para quem quer se soltar / Invento o cais” (Cais) e “Eu estou com o pé nessa estrada / Qualquer dia a gente se vê” (Nada será como antes) são canções que falam de mim.
Sentimento que segue em: “Eu sou da América do Sul / Eu sei, vocês não vão saber” (Para Lennon e McCartney), “Pra viver nesse chão duro / Tem que dar fora o fulano” (Canto Latino), “O que vocês diriam dessa coisa que não dá mais pé?” (Saídas e Bandeiras) e “Eu tenho esses peixes / E dou de coração à natureza” (Milagre dos peixes).
Talvez o momento de antipolítica e de segregação que vivemos agudize a comoção do meu conflito. “Que tragédia é essa que cai sobre todos nós?” (Promessas do sol), “O brilho cego de paixão e fé, faca amolada” (Fé cega, faca amolada), “Só pensa agora em voltar / Não fala mais na bota e no anel de Zapata” (Tudo que você podia ser), “Aqui vive um povo que merece mais respeito” (Notícias do Brasil).
Dizem que os ídolos fazem parte das nossas buscas por identificação. Fiz música pensando em pedir ao Milton para cantar e até escrevi os argumentos para um filme, com base no livro “O Sal da Terra”, de Caio Porfírio Carneiro, que tinha a música “Canção do Sal” como trilha. Tudo sob o mantra: “Há que se cuidar da vida / Há que se cuidar do mundo / Tomar conta da amizade” (Coração de estudante).
Nessa relação de fã e ídolo, tive uma grande decepção juvenil. Milton Nascimento foi o único artista que tentei entrevistar e não consegui. Ele estava hospedado no Othon em Fortaleza e, depois de várias tentativas frustradas, consegui falar com ele por interfone. E desabafei: “Somos estudantes, Milton, acreditamos em sua música. Isso é traição!”.
Mesmo assim, da mesma maneira que, na década de 1980, vi o Milton no Centro de Convenções, em Fortaleza, estive em outros shows dele como o que ele cantou com o coral infantil Rouxinóis de Divinópolis (1995) e com Tiago Iorc (2017), em São Paulo. Pensei que tivesse superado tudo isso, mas estou com dificuldade de renovar a satisfação de ver o meu velho ídolo no palco com o corpo debilitado e aquela voz tão sublime desaparecendo. “Longe, longe, ouço essa voz / Que o tempo não vai levar” (Sentinela).