Era final da década de 1970. Tínhamos acabado de nos deitar para dormir, depois de uma agitada noite no carnaval de praça, de praia e de clube em Paracuru. Estávamos em uma casinha de morador alugada no centro da cidade, com redes armadas pelos quartos, sala e corredor. De repente, o silêncio foi quebrado com uma briga na casa vizinha. Alguém havia guardado alimento para comer na volta da farra e o lugar era o mais limpo.
Em casa conjugada, parede com parede, qualquer zoada ao lado dá para escutar de pertinho. Mesmo assim, a sensação que eu tinha era a de que no nosso grupo de amigas e amigos ninguém estava acordado. Até que na desavença lateral uma mulher comentou: “Deve ter sido este menino; ele é tão esgalamido que um dia desses raspou tanto o prato que comeu as florzinhas”.
Começamos a rir sem parar, cada qual por si e todos como se fôssemos um. Despertei e comecei a pensar em como seria esse prato de florzinhas que teve seu decalque tão famintamente raspado. Lembrei-me de que a venda desses pratos com estampas de flores era muito comum nas feiras do sertão. Coisa que veio do oriente e atravessou o oceano séculos atrás para chegar nas casas mais simples do interior.
Fui convidado pelos meus pensamentos para ir apreciar a imensidão do mar naquele momento em que o sol nascia. Tudo estava tão calmo; uma calmaria embalada pelo som das ondas do mar deitando-se folgadamente sobre o corpo oferecido da praia, em harmonia com o som do vento acariciando as palhas do coqueiral.
Caminhei pela orla, acompanhando a minha sombra sobre a areia clara, passando ao lado do curral de peixes e de algumas bicas que jorravam água doce do olho d´água da encosta, até chegar à arrebatadora foz do rio Curu. Sentei-me com as pernas cruzadas para apreciar o encontro daquelas águas mornas em seu deleitoso choque de ondas a levantar espumas.
Algo estranho surgiu dessa expressão de prazer gerada com o movimento das águas. Seria um animal marinho? Uma fateixa perdida? Aproximei-me cautelosamente e vi que se tratava de um toco de madeira irregular, incrustado por fragmentos de conchas. Era uma obra de rebuscado artesanato natural que chegava para mim, depois de esculpida ao sabor das águas, das temperaturas adversas e da ação de organismos marinhos.
De que árvore teria sido aquele pedaço de tronco? Seria de alguma mata litorânea exuberante? Assim como o prato de florzinhas, haveria em sua história a travessia pela cultura de algum lugar distante? De qual floresta aquele toco poderia ter sido cortado? E aquelas conchinhas agarradas a ele? Que moluscos as habitaram quando estavam inteiras?
Enquanto perguntas rondavam a minha cabeça, variadas formas e texturas foram revelando-se para mim naquela mistura de carbono aprisionado da madeira com carbonato de cálcio das conchas. Dois reinos, o vegetal e o mineral, unidos em uma mensagem arquetípica: de um ângulo, aquela escultura me mostrava um ser terrestre carregando nas costas sentidos amontoados; de outro, percebi facilmente um pássaro bicando a cabeça de um mamífero desnorteado.
Ainda hoje tenho essa peça comigo. O que resta de algo é, muitas vezes, a fonte de novas criações. Em 2014, quando publiquei o livro “Invocado – um jeito brasileiro de ser musical”, incluí no repertório, com interpretação da banda Dona Zefinha, a música “Batuquê de Praia”, de Petrúcio Maia (1947 – 1994), que, em plena luminosidade da alegria, nos instiga a estarmos atentos ao que de fato faz bater os nossos corações, como naquele dia aconteceu comigo no mais antigo carnaval de praia do Ceará.