Quase três décadas depois de conquistarem sua independência da França (1962), os argelinos conseguiram fazer uma reforma constitucional (1989) que permitiu o multipartidarismo, mas não foi fácil pensar em democracia num país com tantas discórdias políticas e culturais, e com uma economia praticamente dependente do fornecimento de gás natural para a Europa. Com população predominantemente muçulmana, a miscigenação argelina é formada por berberes, árabes, turcos, subsaarianos, andaluzes e franceses.
A vaidade e o recato da juventude desse país do noroeste africano em dias de amor e ódio formam a base do tema do livro Amor, Tártaros e o País (Instituto Echorouck, 2000), de Khaled Omar Benguega, jornalista e escritor argelino, especialista em assuntos políticos, com forte atuação na difusão da literatura árabe. O autor esteve no Brasil em agosto passado, na programação de Sharjah, cidade dos Emirados Árabes Unidos convidada de honra da Bienal do Livro de São Paulo.
A história de Maryam e Azeiz se passa no momento em que a Argélia vive o conflito armado decorrente de um golpe militar contra a vitória eleitoral islâmica no país, situação que teve grandes episódios de violência extrema na década de 1990. Nesse cenário de guerra civil, o autor conta a história de uma moça do interior que ao ter acesso à universidade sai do vilarejo onde nasceu e passa a morar na cidade, vendo-se diante de um mundo de confusões entre a fé a racionalidade.
A convivência no ambiente universitário com pessoas de várias classes sociais revela aprovações e desaprovações enfrentadas por uma estudante de pensamento crítico, comprometida com a religião, mas aberta para a vida. A protagonista busca respostas para os transtornos do embate entre o autoritarismo e a leitura equivocada do islamismo, em situações de cumplicidade e repulsa no meio de mulheres que usam e que não usam hijab, relacionamentos amorosos e monitoramento por parte de agentes de segurança.
Maryam é sondada para cooptação tanto pelo governo quanto pela resistência, mas não aceita a polarização. Ao ser interrogada sobre sua condição política, diz com veemência para o oficial que a monitora: “Sou leal à Argélia” (p. 78). O que soa diferente no comportamento dela é a força da sua personalidade, que se contrapõe ao lugar comum das posições normalmente determinadas pela realidade e pelas aspirações pessoais e de grupos em circunstâncias de desigualdades e injustiças.
Nessa obra, o amor é tratado como condição moral, necessidade material, relacionamento com Deus, mas sobretudo como “base de inovação ideológica” (p.116). Ao ter seus sonhos com Azeiz atingidos por imposições culturais, Maryam chega a aceitar a perda da luta política pelo domínio do corpo, mas desafia o seu amado para “que sejamos donos do nosso próprio coração” (p.197), pois é em seu coração que a poesia se torna verdadeiramente revolucionária.
O livro de Khaled expõe afirmações e contradições de um povo, quando os poderes entram em sobressalto, as convicções viram fé e a fé se torna obrigatória. A efusão de diálogos provocantes é o ponto de envolvimento e de contemporaneidade dessa obra onde as conversas são inspiradas na lógica e na retórica, características de um modelo mental ancestralmente sedimentado na oralidade.