O baião-de-dois na cearensidade
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3
Sábado, 02 de Abril de 2005 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Por melhor que seja o sabor e por mais bem ornamentado que esteja, um prato é mais saboroso quando integra o sentimento de um povo. A gastronomia é parte do clima, da sabedoria, das expressões artísticas e da química humoral de uma gente. Pode exaltar, apenas retratar ou denunciar suas intenções para com a vida. Não existe culinária sem história, sem pessoas. Ao saborear um baião-de-dois devemos estar preparados para sentir o que ele carrega da contribuição do mundo rural à nossa cultura. Se refeição quer dizer refazer as forças, para quem percebe que é do Ceará comer baião significa ingerir uma porção simbólica da nossa própria habilidade de superação de infortúnios. Por isso, o baião-de-dois merece estar entre os hábitos alimentares que pertencem à esfera do patrimônio imaterial.
O sentido atribuído ao baião-de-dois ainda parece um tanto reservado em nosso cotidiano. É como se precisássemos nos limitar à intimidade da comida em si para podermos alimentar a nossa identidade. Essa timidez, no que diz respeito a autovalorização cultural, pode ser também o simples reflexo do pouco exercício que fazemos para admirar o que temos de melhor. Protegido ou não pelos caprichos do inconsciente, o baião ajuda a definir quem somos. Independente de nos determos na alquimia derivada da mistura candente dos atributos do arroz e do feijão, ela existe e integra o arsenal de energias naturais que nos movem para o trabalho, para a diversão e para a renovação da fertilidade.
Embora tenha estado presente nas quermesses e nas feirinhas de comidas típicas, o baião-de-dois nunca fez parte de cerimônias de consagração. Sempre foi visto como necessário pelo viés da sustança e pelo sabor. Vem da antiguidade a idéia de que a saúde depende da boa combinação entre as propriedades dos alimentos que ingerimos. Feijão e arroz são elementos da nossa dieta orgânica. Mais do que fonte de nutrição, essa mistura espontânea se confunde com o jeito cearense de se aconchegar. O prato original tem como complemento o cheiro-verde, a nata do leite e o queijo de coalho e é comido com acompanhamento de paçoca, carne assada na brasa e manteiga-da-terra. Tudo parece combinar com o baião. Foi por conta dessa flexibilidade da receita que o baião-de-dois pôde ser adaptado ao gosto das culturas regionais brasileiras, sem perder a sua essência.
Os feijões mais tradicionalmente utilizados na preparação do baião-de-dois são de origem americana, da faixa que se estende do norte da América do Sul ao México. O feijão-de-corda (de tom escuro), chamado no sertão de casca-frouxa é o mais comum nas residências interioranas. O preferido dos cardápios dos restaurantes é o feijão (graúdo e branco) conhecido como boi-deitado. As amostras arqueológicas vegetais indicam que os feijões eram usados em festas gastronômicas e evocados como ícones existenciais no mundo antigo. Dizem que era o prato predileto dos guerreiros de Tróia. E tem sentido, pois o feijão foi disseminado em todo o planeta por integrar os suprimentos das guerras e das grandes navegações. É um alimento de alto valor nutricional e rico em fibras que ganhou realce na mesa do brasileiro.
O arroz nosso de cada dia veio do continente asiático. Tem presença marcante nas escrituras hindus. É também atrelado a momentos festivos, como ainda hoje se vê nas cerimônias nupciais. Jogar arroz nos recém-casados, logo após a cerimônia de união, simboliza votos de fertilidade. Com a ocupação dos árabes na Península Ibérica (entre os séculos VIII e XV), o arroz, do tipo que comemos hoje, chegou à Europa e posteriormente às Américas. Existe uma controvérsia de que os povos nativos brasileiros cultivavam um certo “milho-d´água” que seria uma espécie de cereal parente do arroz. Nunca consegui muitos detalhes sobre essa hipótese. O certo é que as lavouras arrozeiras estão evidentes em nossa história desde o início da colonização no Brasil.
Feijão e arroz foram associados para virar baião-de-dois posteriormente aos anos de pastoreio nômade do ciclo do couro, no período colonial, quando os limites da propriedade da terra eram estabelecidos pelas marcas deixadas pelas boiadas, sertão adentro. Naquele tempo, em que se salgava carne com o suor dos animais, vaqueiros, tropeiros e comboieiros comiam farinha com carne seca, rapadura e queijo curtido, além de mucunzá. Meu pai, que por muitos anos andou a cavalo pelas veredas do sertão e da Serra Grande vendendo gado, conta que o mucunzá foi o nosso primeiro baião-de-dois. A dobradinha milho e feijão já permitia a prática da criatividade no aproveitamento das sobras de carnes e legumes. O mucunzá da minha mãe é feito com feijão-de-corda, milho descascado e cubos de queijo seco, afogados em um saboroso caldo branco.
As plantações de arroz no Ceará eram escassas e dependiam de um ou outro baixio bom. Depois de colhido, dava um trabalho enorme descascar em pilão. A determinação cabocla somente começou a acelerar a alternativa do arroz ao milho, na composição do baião-de-dois, com o crescimento da oferta de arroz no mercado brasileiro. A mistura do arroz com o feijão na ora de cozinhar era uma forma de economizar água. O deslocamento de retirantes para o litoral, em busca de trabalho nas salinas, nos períodos de seca, bem como a migração de comerciantes de peles, mamona, oiticica e algodão para o litoral, aproximou o baião do peixe de água salgada, ligando as raízes do sertão e do mar. Mesmo assim, o baião-de-dois foi por muitos anos relegado a um plano inferior pelos nossos rituais de diferenciação e de prestígio social. Era acusado de ser comida de pobre, de matuto. Nas últimas décadas esse conceito vem passando por uma reclassificação e o baião chegou aos restaurantes urbanos onde começa a ser apreciado como símbolo de uma identidade regional.