O bispo azul de Japaratuba
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3
Quinta-feira, 15 de Fevereiro de 2007 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Tenho o hábito de entrar nas pequenas cidades, que ficam à margem das rodovias, quando estou viajando. É agradável vivenciar por alguns momentos o jeito de ser dos lugares. Vez por outra esse costume me causa boa surpresa. Foi o que aconteceu em Japaratuba, no interior de Sergipe. Entrei nesta cidade pelas portas dos fundos. Sua entrada principal é voltada para a BR 101, que liga Aracaju a Maceió. Como eu vinha do litoral sergipano, cheguei por trás.
No mapa, Japaratuba parecia uma cidade comum. Ao me aproximar do centro comecei a notar que não era bem assim. Ao longo das ruas fui vendo os postes da rede elétrica servindo de mastros para estandartes de expressões da cultura popular. Uma infinidade deles. Pela data, de 4 a 7 de janeiro, estampada nos cartazes, compreendi que tinha chegado um dia após o encerramento da festa de Santos Reis e São Benedito. Olhei para a rua que dá acesso à praça da igreja de N. Sra. da Saúde e fiquei imaginando o cortejo de alegria, sentido comunitário e religioso que ajudara a construir os ornamentos daquele cenário.
Segui lentamente observando os sinais e os símbolos deixados pela festa. Cada bandeira apresentava o nome de um auto, com a sua respectiva fotografia. Assim, em Cacumbi, aparecia um grupo de brincantes com camisas amarelas e calças brancas, tocando caixa, ganzá, pandeiro, cuíca e reco-reco; na representação do Guerreiro, cenas de dança com indumentária multicolorida pontuada de espelhos e fitas; no anúncio da Chegança, uma formação de marujos com vestes brancas, branco com azul e detalhes em amarelo-ouro. Como essas, seguiam-se as flâmulas de Maracatu, Reisado, Pastoril, Olorum Axé, Batalhão, Maculelê, Taieira, Arthur Bispo…
Arthur Bispo! Achei estranhamente positivo ver uma bandeira com a figura do enigmático artista plástico Arthur Bispo do Rosário (1909 – 1989) hasteada no mesmo nível de importância das tradicionais manifestações populares. Fiquei curioso com essa distinção inusitada, mesmo após descobrir que ele nascera em Japaratuba. Fui ao pequeno memorial histórico da cidade e vi lá uma intenção de criação de um espaço específico para Arthur Bispo. A dona Maria Amélia, que toma conta do lugar, foi me informando que a cidade tem um palco para apresentações e um festival de artes com o nome do seu filho mais ilustre.
Eu não tinha visto ainda, mas ela me avisou que na entrada da cidade havia uma estátua de Arthur Bispo. Disse-me com ar de orgulhosa vibração interior que os japaratubenses tinham conseguido resgatar os restos mortais do artista, que estavam no Rio de Janeiro, para enterrá-los em seu lugar de origem. Em um impresso promocional do município, percebi o convencimento daquela gente, com relação a Bispo: “Arthur Bispo do Rosário nasceu em Japaratuba-SE, era esquizofrênico paranóico e viveu internado 50 anos em um hospital psiquiátrico (Colônia Juliano Moreira – Rio de Janeiro). Em seu surto, recebeu a missão de recriar o universo para apresentar a Deus no dia do Juízo Final”.
Confesso que fiquei encantado com a intensidade da aceitação de Arthur Bispo no lugar onde ele nasceu. Fosse uma terra de fraca expressão da cultura popular, talvez o preconceito contra o “doente mental” tivesse vencido a grandeza da arte que veio do seu inconsciente. Japaratuba demonstra com essa louvável atitude que é uma terra de gente sábia e magnânima. Gente que aprendeu a valorizar a essência humana em sua história de lutas. Com não mais do que 20 mil habitantes, esse pequeno município sergipano vive do cultivo do coco, mandioca, cana-de-açúcar, artesanato e alguns royalties que recebe da exploração de petróleo.
Marcada pela resistência indígena aos colonizadores e pelo grande fluxo de escravos que recebeu no período colonial, a maior riqueza do município é a sua cultura popular mestiça. Uma cultura caldeada no respeito às diferenças. O exemplo da relação dos japaratubenses com o seu conterrâneo Arthur Bispo é uma prova desse valor social. Dona Maria Amélia não cabe em si de contente ao contar que a escola de samba Império Serrano homenageará Arthur Bispo do Rosário exatamente em um enredo que fala das diferenças, no Carnaval carioca deste ano de 2007.
A Império Serrano está completando 60 anos e quer firmar na avenida Marquês de Sapucaí o perfil de diversidade que a acompanha desde que se estabeleceu como agremiação ligada aos trabalhadores portuários do Rio de Janeiro. Para mostrar esse aprendizado de convívio harmonioso, a verde e branco faz este ano um desfile enfocando figuras emblemáticas que inspiram reflexões sobre o ser diferente nos planos estético, social, religioso e cultural.
A revelação da intolerância desfila em Quasímodo, sineiro da catedral de Notre Dame, de Victor Hugo; a lição de que as aparências enganam, dança na mente brilhante escondida por trás de um menino pouco sociável e aluno repetente chamado Albert Eistein; a negação da debilidade marcha nas cores da vida berrante de Frida Kahlo; a superação de limites faz elevações na vida e obra do Aleijadinho de Sabará; a contestação do belo canta na poesia de Noel Rosa em busca de corações apaixonáveis; e os limites da existência sambam no delírio criador de Arthur Bispo do Rosário. Tudo ao som da marchinha “Exuberante”, de Ernesto Nazareth: “Rompe o carnaval / Pierrôs, Colombinas / E dançarinas / Belas e finas”.
A sensibilidade de Arthur Bispo estará na avenida sem tocar o chão. Ele dizia que “Os doentes mentais são como os beija-flores, nunca pousam”. Os verdadeiros artistas também não. Principalmente artistas como ele, que não precisaram se ligar a escolas de artes plásticas, nem ter qualquer conhecimento técnico para fazer arte. Ao ser evocado por Deus a recriar o universo, recolheu o lixo da sociedade de consumo, utilizou os fios do próprio uniforme do manicômio e recorreu a palavra escrita para expressar imagens no cumprimento da sua missão de ser profundo em sua revelação.
Arthur Bispo deixou Japaratuba com 15 anos de idade. Passou os 15 anos seguintes inventando jeito de sobreviver pelo Sudeste, inclusive como marinheiro e lutador de box. No hospício, onde ficou internado por 50 anos, desenvolveu uma obra de extrema atualidade estética. Quando alguém queria ver o seu trabalho, ele não se incomodava, desde que o visitante dissesse a cor da sua aura. A senha era dizer “azul”. Depois de ler essas e outras passagens sobre a vida desse visionário genial, deixei Japaratuba pela via principal. Antes de pegar a estrada, em uma bifurcação, parei para ver a estátua de Arthur Bispo que a dona Maria Amélia tinha falado. Fiquei olhando com reverência para aquele monumento. Ao fundo, a cidade, generosa, transpirava simplicidade e paz. O céu estava cheio de nuvens, mas incrivelmente azulado, o dia bonito. Falei baixinho: “A sua aura está azul, Bispo”. E fui embora.