A eleição presidencial, encerrada no domingo passado (28), teve a inusitada marca da experiência eleitoral da negação. As duas correntes finalistas valeram-se da significativa rejeição uma da outra para tentar convencer o eleitor de que, dos males, seria o menor. O resultado dessa inversão de sentido dos pleitos democráticos instalou no país uma centelha de divisão incongruente com os traços aglutinadores da cultura brasileira.
Esse fenômeno esquizoide, fomentado por medos, ameaças e inconveniências da má propaganda política, provocou uma ruptura na relação de muitos eleitores consigo mesmos e nos seus relacionamentos sociais e políticos. A somatização decorrente das trocas temerosas e trêmulas de mensagens corrosivas, tantas vezes falsas e repetitivas, sedimentou a sensação de que o Brasil está dividido.
Não, o Brasil não está dividido. Há um desconforto causado pelos atritos da guerrilha de postagens digitais, ora manifestada na necessidade de confessar preferências – comum nas afirmações clubistas –, ora expressa na crença de realização de atos heroicos – presente em situações de desespero casual. O certo é que a leitura das urnas tem valor de decisão popular soberana, mas não representa o sentimento nacional mais amplo.
Experimentamos os efeitos de um descontrole emocional coletivo reverberado pela angústia de quem faz parte de uma sociedade alegre e se pega entristecido por renitentes enunciados de futuros mais incertos, mais amedrontadores e mais perigosos do que a realidade atual. Os sinais dessa fenomenologia existencial aparecem no enfraquecimento da capacidade que a sociedade tem de refletir além da busca por rotas de fuga e sobrevivência.
Passamos individualmente por algo semelhante ao que o psicanalista britânico Ronald David Laing (1927 – 1989) tratava como perturbação externa da comunicação humana, na transição entre as maneiras esquizoide sadia e psicótica de estar-no-mundo. Se, no quadro atual, o eleitor brasileiro fosse seu paciente, decerto seria diagnosticado como praticante de auto ilusão perante a traumática decisão de esperar da política uma coisa e votar em outra.
No curso dessa eleição para Presidente da República, a cisão existencial partiu grosseiramente elos do Eu e Você em consequência da visão restritiva e anticonciliadora da pregação do Nós e Eles em variadas condições sociais, condenando o povo brasileiro a confusões mentais pressionadas pelo esforço das pessoas e dos grupos sociais de se encontrarem e, ao fazerem isso, não perceberem os riscos das atitudes tomadas contra si mesmos e contra os outros.
Quando os ouvidos passam a servir apenas para falar, a noção de que se pode estar certo, mas também enganado, some e com ela desaparece o diálogo. “No contexto da sanidade mútua existe, porém, uma ampla margem de conflito, erro, interpretação errônea…”, esclarece o Dr. Laing em seu estudo “O Eu dividido” (p.36, Vozes), no qual ele fala do reconhecimento recíproco como base para o equilíbrio em contextos de divergência.
O Brasil não merece ser dividido. Nós, brasileiros, não queremos, nem merecemos isso. O país entra em um período de grandes interrogações, e, se “no nosso território interior somente nós podemos deixar pegadas” (idem, p.38), o que menos devemos fazer é apostar no rastro do dilema dos extremismos.