O Cachimbo do Pescador
Artigo publicado no Jornal O Povo, Caderno Vida & Arte, página 8
Terça-feira, 24 de Agosto de 1999 – Fortaleza, Ceará, Brasil
É impressionante como ainda existe gente que tem dificuldade de perceber se é melhor morar dentro de um lugar bem bonito ou de frente para um lugar bem bonito. Da mesma maneira, há povos que não conseguem distinguir se vivem dentro da redoma do subdesenvolvimento forçado por circunstâncias históricas ou se podem cair na aventura de sua própria fortuna e conexão com o fluxo da natureza e do seu sentido de destino. Os registros dos fatos notáveis da humanidade estão aí para provar que as linhagens humanas ditas promissoras jamais permitiram que outros grupos pudessem expressar seus talentos evolutivos sem o exercício da conquista.
O caos que estamos vivendo é o sinal primoroso da oportunidade para a transformação. Basta atentar para as nossas possibilidades e agir. Nada vai cair do céu e, para completar, nossa grande maioria continua se esforçando para a boa imitação cultural, geradora de civilizações de segunda categoria. Mesmo assim, essa conversa de civilização, onde somente a cultura dos outros é capaz de proporcionar a nossa expansão, começa a entrar em lenta desconstrução. As mudanças globais precisam encontrar soluções locais, com seus respectivos laços de fraternidade. O instrumental da modernidade é bem-vindo quando aplicado em favor dos desejos regionais e fundamentado na interdependência comunitária, continental e mundial. Mais do que qualquer fator, a complementaridade e o respeito à diferença se impõem como imprescindíveis para o futuro com equilíbrio.
O ofuscante esplendor do modelo estabelecido pela ética utilitária econômica, que coloca o destino do planeta nas mãos das corporações transnacionais, está no limite da sua curva de crescimento. Impossível prevê uma cultura global de subjetividade unívoca, idêntica a si mesma. A hipótese do sucesso dessa meta é a morte do homem, a desintegração social, o desjuízo final. Quando o parasita torna-se maior do que o hospedeiro, a vida de ambos está comprometida. A despeito da filosofia e dos avanços do conhecimento tecnocientífico terem alterado seus fundamentos ligados à contribuição para a relação harmoniosa entre a natureza do homem e a natureza, substituindo-os pela exploração mercantil e o controle geopolítico, não há como esperar a vitória da estupidez cristalizada.
Diante do número incalculável de vetores com força para mudar os rumos da história, se cotejarmos desapaixonadamente os acertos e contradições da humanidade, perceberemos surpreendentes vitórias da sabedoria. Foi assim na luta pelo fogo, nas conquistas do iluminismo e será na derrocada dos economistas. Minha intuição me impele a colocar as melhores fichas na casa do otimismo. O exagero da devastação propiciará novos olhares e atitudes. Começamos a nos reconhecer no deserto como ninguém e isso nos fará retornar como alguém. Na hora em que entendermos que, para satisfazer nossas necessidades não é preciso reduzir as oportunidades das gerações futuras, estaremos de passo novo na dança da vida, estaremos aptos a incentivar o exercício construtivo da nossa força transformadora.
A modificação dos parâmetros atuais dependerá e muito da abolição, em todos os níveis, do sentimento de supremacia racial, cultural e do poder conservador do monopólio do conhecimento, alimentado por verdades exclusivas. O poder das armas vem determinando hegemonias no mundo, mas a lógica de que o mais brutal é superior, degringola para uma deslavada mentira no milênio que chega. A sociedade está com uma febre crônica, causada pela infecção das aparências, da ganância desmedida e inconseqüente. Nossas células culturais estão bastante comprometidas e um conjunto de indicadores de ações descoordenadas, facilmente identificado nas mais diversas patogenias de violência que nos deparamos a cada instante, denunciam a fragilidade em cadeia do nosso tecido de solidariedade e debilitação orgânica do senso de convivência.
Deparamo-nos todos os dias com fatos reveladores dessa contaminação. Quando os nativos amazônicos são acusados de seguir seu costume de cultivar mandioca em terra considerada boa para pastagem e soja transgênica, tem alguém querendo dizer que entende mais da vida do que eles. Quando europeus e estadunidenses se apropriam da fervorosa estética africana, asiática e latino-americana para passarem por modernos e vender novidades para o mundo inteiro, estão usurpando valores culturais e reduzindo o direito coletivo dessa gente de obter maior retorno econômico com a sua própria arte. Quando o nosso ânimo aristocrata e provinciano é tomado sobre si por algumas sumidades de araque e esse distúrbio trai o compromisso com a nossa razão mestiça, a noção de cultura toma proporções de varejo e definha na sua dignidade.
Ser civilizado é assumir a nossa saciologia (1) em toda a sua dimensão metafísica essencial. Os olhos das ruas e das florestas. Precisamos abrir mais as cortinas e ver o mundo que os satélites não captam e deixar que o sol ilumine as dependências mais modestas das nossas casas. Enquanto tivermos qualquer tipo de ventríloquo expressando o que é progresso para nós, continuaremos tímidos na celebração do passeio dos dias, entre belezas e conflitos, aí, sim, compensadores e inesgotáveis. Essa entidade pacífica, romântica, sonhadora, criativa e fadada a ser feliz, que é a gente brasileira, não tem por quê ter saudade de um futuro pleno de opções ancoradas na saúde cultural resultante da miscigenação. Faz-se indispensável, obviamente, que ampliemos a nossa participação política, a nossa reflexão do que queremos e merecemos ser, deixando de lado o medo de inventar o destino.
Tem acontecido com uma certa freqüência a exploração jornalística da nossa perplexidade arcaica no confronto com as maravilhas da modernidade. Normalmente é a imprensa “sudestina” gozando da pureza largada do homem simples do Brasil de dentro. Recordo de uma foto de primeira página da Folha de São Paulo, na qual apareciam os olhos arregalados de um grupo de pessoas do Piauí, posto pela primeira vez diante de uma televisão. Como este, muitos outros registros desse tipo de choque têm provocado diversão nas rodas civilizadas. Formamos uma nação de urbanidade matuta, mas metida a besta. No fundo, no fundo, o desnível cultural entre nossas metrópoles, suas periferias e o campo é imperceptível. Os códigos e as formas de expressão são diferentes, mas tudo cabe na nuvem de poeira do improviso colonial. Não há, portanto, motivo para arroubo de supremacia interna nacional, regional, local ou o que seja.
O anverso dessa medalha jornalística, se explorado na limitação da inteligência bandeirante, mostraria apenas com roupa diferente a mesma efígie hesitante. Imagino uma televisão indígena expondo a face irresoluta de um desses habitantes dos condomínios fechados que pensam que na floresta amazônica tem urso e tigre. Seria o maior escárnio. Mas os índios têm mais o que fazer e, com certeza, não perderiam tempo com essas coisas de alma pequena. Essa ponderação livre me faz vir à memória uma situação vivida pela filha de um amigo que deu o maior escândalo no sertão ao se deparar com uma galinha de verdade. Saiu correndo, aos gritos: “Mamãe, uma Maggi”, referindo-se evidentemente à marca do caldo de galinha em tabletes. O olhar de admiração e espanto dessa menina daria, como os olhos dos piauienses pregados pela primeira vez na luminosa telinha de tevê, uma bela foto de primeira página. Quantas situações de possíveis perplexidade urbana no campo poderíamos identificar ou imaginar? Inúmeras, certamente. De sorte que não é pelo olhar entrechocado que se deve medir grau de civilização.
Somos essa busca constante de um encontro desmarcado pelo nosso próprio instinto canino, que nos leva a urinar nos postes de uma ou outra área de interesse, fixando assim o nosso quarteirão de domínio. É muito pequeno tudo isso. Os tempos atuais nos impõem mais maturidade, mais consciência do todo como trama das partes. O campo continua sonhando com a cidade e a cidade sem ver a hora de fugir para o campo. Não há nada de errado no uso dessa válvula de escape. É normal estar perdido, mas não é nada normal deixar-se permanecer assim. Temos muitas insatisfações mas na verdade pouco temos nos preparado para colocar em ação as propostas de superação ao que não acreditamos.
Conta a sabedoria oral que numa certa praia desértica morava um pescador que gostava muito de fumar cachimbo. Passava horas e horas a fumar, contemplando o horizonte. Quando estava com fome, pegava uma jangada e ia buscar o alimento no mar, deixava em casa e voltava à falésia para seu hábito prazeroso. Um dia, passou por ali um economista que estava de férias. Incomodado com a tranqüilidade “ociosa” do pescador, aproximou-se e puxou assunto. Descobriu que o pescador possuía uma jangada e logo fez uma série de contas, provando matematicamente que se aquele pescador investisse diariamente seu tempo para acumular o resultado de uma pescaria estruturada, em no máximo dez anos ele estaria pronto para sentar naquele mesmo lugar e fumar o seu cachimbo em paz. Ao argumentar toda a sua lógica para o pescador, o economista recebeu como resposta a seguinte indagação: “E o que é que eu estou fazendo, camarada?”. E assim caminha a diferença.
(1) Saciologia é um neologismo criado pelo poeta goiano Gilberto Mendonça Teles. Vem de Saci, uma das mais populares entidades fantásticas brasileiras, em associação com sociologia.