O caju nosso de algum dia
Artigo publicado no Jornal O POVO, Caderno Vida & Arte, pág.5
Quarta-feira, 16 de abril de 2014 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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FAC-SÍMILE

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Mais do que parte do hábito alimentar dos habitantes originais do nordeste brasileiro, o caju pertencia à esfera da cultura indígena em sua expressão de dança (torém), bebida (mocororó) e comunhão (rituais de tempo de safra). Com a determinação dos colonizadores de dizimar nativos tão resistentes à sua dominação, foram destruídas, juntamente com a maior parte deles, expressões valiosas da sua cultura.

A aceitação dos remanescentes indígenas ainda causa arrepios em muita gente, mas é uma questão que avança lentamente. Paralelo a essa restituição de aspectos de identidade, nota-se um sugestivo avanço na ressignificação do uso do caju como oferta gastronômica. Com o crescimento da tendência de saudabilidade na alimentação, os produtos derivados do caju ganham espaço na nossa gastronomia, embora ainda longe de um consumo como prática cultural.

Vez por outra a gente vê um grande mestre da culinária se pronunciando sobre o caju. O chef pâtissier François Payard é um dos que consideram essa fruta nordestina como a mais representativa das que utiliza em suas criações brasileiras de bolos e doces. A castanha (fruto) já ocupa lugar de destaque nas mesas internacionais, mas somente nas quatro últimas décadas começaram a surgir esforços para a transmutação do pedúnculo floral em prato salgado.

No dia sete passado foi lançado no restaurante “O Banquete”, em Fortaleza, o livreto “Intercaju Gourmet – alta gastronomia regional contemporânea“ (Secitece, 2014). Essa publicação, organizada pela chef Liliane Pereira, reúne doze receitas de entradas, pratos principais e sobremesas, que utilizam o caju como ingrediente principal, assinadas por profissionais conhecidos da gastronomia no Ceará: Karliano Pereira, Luciano Ferreira, Neiva Terceiro, Leo Gondim, Marie Anne, Vládia Gomes, Faustino, Edilson Araújo, Cícero Disny e a própria Liliane Pereira.

Com essa ação, a Secretaria da Ciência, Tecnologia e Educação Superior (Secitece) visa contribuir para revolver a letargia da cajucultura cearense por meio do fortalecimento de uma referência cultural gastronômica baseada no caju. O caminho da alta cozinha me parece bem adequado no que diz respeito à sensibilização de uma elite que ainda acha que caju é comida de índio. É inaceitável que nos eventos oficiais não haja a presença permanente de pratos com base no caju.

A investida em uma estética da mesa, capaz de tratar o caju como artigo de luxo, etiqueta e perfil de classe pode dar o sentido de prestígio social e fazer com que as receitas de pratos com caju se tornem padrão aspiracional, alcançando toda a escala social. A culinária, como outras tecnologias, pode ser transferida, assimilada em saberes, sabores e conhecimento.

Esforços isolados vêm sendo feitos há tempos. Há vinte anos, a nutricionista Miranice Gonzaga Sales, da Universidade Federal do Ceará, e a engenheira de alimentos Deborah dos Santos Garruti, do Centro Nacional de Pesquisa de Agroindústria Tropical (CNPAT) publicaram o livro “Delícias do Caju” (Embrapa, 1994) com mais de duzentas receitas, entre bebidas, pães, biscoitos, salgados, doces, sobremesas, bolos e tortas, inclusive algumas de outros países, como China e Índia.

A restaurateur Sandra Gentil, também incluiu uma receita de caju em seu livro “Nova Cozinha Nordestina – a comida regional com um toque de classe” (Maltese, 1995). Pena que ela não tenha dado o crédito a autora da “Torta salgada de caju” (p. 26), uma criação da artista plástica Nice Firmeza. Nesse sentido, o livro organizado pela chef Liliane Pereira foi bem mais cortês com o que veio antes, nomeando um dos pratos de “Caju à Cione” (p. 25), uma homenagem à indústria do empresário Jaime Aquino, que na década passada fez um esforço de popularização da gastronomia do caju; esforço esse que tive a satisfação de conhecer quando almocei no “Restaurante do caju” da indústria de Aquino.

A história da torta de carne de caju, criada pela Nice, remonta ao início da década de 1970, quando ela foi abordada por freiras do convento das Josefinas, que lhe pediram um prato salgado para oferecer a uns padres que estavam em visita à paróquia do Mondubim. Ela não tinha carne em casa e resolveu aproveitar uns cajus que havia separado para fazer um doce. Tirou a pele de cada um, espremeu bem e preparou tudo com temperos de pratos salgados, como cebola, pimentão e tomate refogados no azeite com alho, mais cheiro-verde, sal e ovos.

Os padres acharam uma beleza e perguntaram onde a Nice tinha conseguido aquele camarão tão gostoso. No que ela respondeu: “o pé deles é lá em casa”. Os padres ficaram sem entender nada. Foi quando ela revelou que o que haviam comido era carne de caju. De lá para cá, muitas experiências voltadas à culinária do caju foram desenvolvidas, como a da parceria da Copan/Nutec, que chegou a fazer molho chutney, quetchup, picles e até farinha de caju para tomar com leite. Tenho a esperança de que algum dia essa riqueza faça parte dos nossos hábitos cotidianos.