A ausência de consideração com o passado parece ser uma das causas da crise de significados do mundo atual. Vivemos um tempo de fragmentações e de corrosão da memória coletiva, em que pese aos avanços do deslocamento de grupos marginais para o centro das atenções sociais. Faz-se necessário ligar pontos para dar mais leveza ao nosso olhar e mais clareza aos rumos que temos tomado.
O programa “Morada de Conteúdo”, da Fundação Casa Grande, de Nova Olinda, está voltado para o restabelecimento dos contextos histórico-culturais do Cariri, revelando que um lugar novo pode ser secular. A iniciativa procura realçar uma coleção de referências de casas de famílias que seguem habitadas e que permitem reevocações de valor.
Vivi recentemente essa experiência de novidade ao ser recebido na Casa de Mãe Yayá, que fica no centro da cidade de Barbalha, a 12 km de Juazeiro do Padre Cícero, pela avenida Leão Sampaio. O casarão, construído entre 1900 e 1905 pelo comerciante José de Sá Barreto Sampaio (1861 – 1940), conhecido como Zuca, e por sua mulher, Maria Costa Sampaio (1867 – 1959), a Mãe Yayá, integra o belo sítio arquitetônico da cidade.
Ali nasceram alguns dos nove filhos do casal, todos com grande influência nos campos da medicina, da educação, da política, da religiosidade e da poesia na região. O mais destacado dos homens foi o médico, deputado constituinte (1934) e prefeito de Juazeiro Leão Sampaio (1897 – 1988). Ele é o autor do decreto federal que criou (1946) a Floresta Nacional do Araripe. Seu filho, Mauro Sampaio (1927 – 2015), também médico, deputado constituinte (1988) e prefeito de Juazeiro, foi quem construiu a estátua do Padre Cícero (1969) na colina do Horto.
Entre as mulheres, o destaque ficou para Alacoque Sampaio (1906 – 1994), que era professora de música e escreveu três livros de poemas intitulados “A Casa da Mãe Yayá”, publicados em 1988, 1992 e em edição póstuma de 1995, nos quais descreve com ternura e lirismo a vida da casa e da cidade. É de sua autoria o hino da cidade: “Canta, Barbalha / A beleza dos palmeirais (…) De tuas fontes o marulhar (…) Esse teu vale sem fim (…) As tuas lutas cheias de ardor / Os que tombaram como heróis” (pp. 28 e 29 do tomo I).
O casarão está permanentemente aberto para visitas virtuais. Quem quiser explorar imagens e textos daquele lugar, basta acessar o portal www.casademaeyaya.com.br/visita-virtual. Essa é uma forma de redução de distância temporal que dá perenidade a vestígios e reminiscências de pessoas e acontecimentos relevantes, decorridos da atuação dessa família barbalhense.
A visita física necessita de convite. A casa é a residência de Vítor, Karine e dos seus filhos Letícia e Daniel. O Dr. Vítor Sampaio, que segue a tradição de médicos da família, faz parte da quinta geração que habita esse espaço bem cuidado e que tem um jardim lindo. Na noite em que Andréa e eu jantamos lá, o casal recebeu também o primo Alexandre Callou e o amigo Jadson Marinho.
Moradia de Conteúdo é isso, uma prova do real, uma fiadora da história e um espaço de cultivo da arte da memória e da imaginação. No casarão de Zuca e Yayá ou, como poeticamente passou a ser chamado, na “Casa de Mãe Yayá”, a realidade sai da mesa, transcende as paredes e circula pelas lembranças das pessoas e dos acontecimentos em instantes que não estão em nenhum tempo.