Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3
Quinta-feira, 06 de Maio de 2010 – Fortaleza, Ceará, Brasil
O deputado Ciro Gomes mudou o título de eleitor do Ceará para São Paulo, onde tenderia a ser candidato a governador, mas depois insistiu que deveria ser candidato à presidência da República, até seu partido decidir que não teria candidato próprio. Grosso modo, sem especular sobre motivos, são esses os fatos-síntese que marcaram as últimas movimentações do ex-governador do Ceará e ex-ministro da Fazenda.
A aposta de Ciro foi alta e ele perdeu. Por conta disso e, óbvio, pelo fato de ser conhecido por não ter papas na língua, ele recebeu uma espécie de linchamento público, causado pela prioridade da percepção sobre o real, normalmente identificada nesses dilemáticos conflitos. Esse tipo de situação inclina-se a ocorrer quando o delineamento da objetividade se dá mais no plano das suposições do que dos fatos.
Temos então eventualmente dois fatores típicos da política e dos períodos eleitorais: a aposta frustrada de um político e a leitura hiperbólica dos acontecimentos. Entretanto, o que sucede no caso Ciro me parece uma condenação impensada de uma liderança importante, quando tem sido tão escasso encontrar lideranças arrojadas e dispostas a se expor pelo que acreditam e defendem.
Ainda que fosse candidato, Ciro não teria o meu voto, pois já tenho a minha candidata à Presidência. O que me leva a escrever sobre o assunto é exatamente o caráter de execução sumária, configurado no caso Ciro Gomes. Ficando como está, sem um debate fora dos interesses eleitorais, esse caso desvirtua a função simbólica da cidadania, ao municiar o senso comum da hipótese de que na vida política a aposta e a indignação são incompatíveis com o funcionamento da democracia.
A arte da política é um jogo de poder e, como todo jogo, tem seu objetivo a ser perseguido de acordo com um conjunto de regras. A democracia é um regime político que privilegia quem consegue ter o discurso mais convincente, no sentido de respaldo de soberania popular, expresso em ato eleitoral livre. Sua regra essencial, embora quase sempre cheia de nebulosas, é, portanto, a da disputa entre grupos pelo maior número de apoiadores e eleitores.
A maneira de Ciro Gomes se mostrar, sem medir palavras, quebra de certa forma o estatuto da moderação do jogo democrático, que sugere cautela na hora de deixar transbordar ao povo o que se passa nos bastidores do cotidiano político. Os partidos, os governos e os parlamentos tornaram-se quase sociedades secretas e não suportam quem fala demais, quem, como Ciro, esculhamba todo mundo. Porém, a negação ao direito de manifestação pública de descontentamento reduz a liberdade de confrontação e enfraquece o debate.
O que me parece em risco na tentativa de linchamento midiático de Ciro Gomes não é necessariamente ele, a pessoa, o político, mas o que representa a sua imagem, como alternância de si mesmo. Quer dizer, desde que possa virar espetáculo, pouco parece importar se o seu papel modelo pode ter ou não relevância. O apedrejamento de Ciro significa, assim, o sentido almejado por um enredo dramático do processo eleitoral, no qual o indivíduo vale menos do que as apostas que faz.
No momento ele perdeu a aposta pública que fez e isso é natural no mundo da política. Pode ter sido uma cartada tão alta que quebrou o seu capital político em âmbito nacional. Na política é sempre bom respeitar o domínio do imponderável. Muitas vezes é abismal a separação entre os acontecimentos e as deduções que deles fazemos. Dizer que por ter errado na aposta o político perde o sentido é pouco razoável para a dinâmica da vida pública.
Independente de sermos ou não partidário de Ciro Gomes, de gostarmos ou não dos seus modos, nós cearenses temos preservado o que ele significa como liderança política com muitos préstimos ao nosso desenvolvimento. Tanto que nas eleições passadas ele se elegeu pelo Ceará como o deputado federal proporcionalmente mais votado do Brasil. Vivemos em um lugar de poucos nomes, um lugar carente de lideranças políticas e onde quer que esteja atuando Ciro é patrimônio político da cearensidade.
É certo que uma vida política não deve ser observada apenas pela classificação pura e simples da linha do tempo. Sem querer encadear os elos da trajetória de Ciro, apenas para chegar a uma objetivação, repasso na lembrança alguns momentos do seu comportamento e verifico que não há surpresas em sua atitude. O que para muitos são posturas desviantes, para ele, Ciro, pode ser coerência. Sua história é uma história de apostas no imprevisto, na incerteza de ganhar ou perder.
Ciro é acusado de ter servido ao PDS, ao PMDB, ao PSDB e ao PSB. Atentando para a questão social, pelo zoom do plano simbólico, podemos questionar as várias trocas de partido como uma volubilidade pessoal ou como uma vulnerabilidade do próprio sistema partidário. Penso que devemos encontrar respostas claras aos motivos que levam muitos políticos a mudarem de partido no Brasil, antes de queimar um ou outro isoladamente na fogueira da inquisição da fidelidade dogmática.
Na arena política “a vontade de um grupo político sempre se choca com a vontade de um outro grupo, antagônico, um corpo de ideias enfeixadas numa doutrina confronta-se com outro sistema conceitual, num embate perpétuo onde medram emoções contraditórias, neuroses e loucuras”, como bem define Valton Miranda em seu livro “A paranóia do soberano” (Vozes, 2000, p.27). Mas na sociedade, o pensamento político do cidadão deve ser diferente do pensamento político dos políticos. São lógicas diferentes, mesmo quando com propósitos, intenções e insinuações comuns.
As circunstâncias de fazer política em tempos de escassa influência intelectual deram a Ciro Gomes uma plataforma de projeção heróica em temporalidade significante, subordinada a ele mesmo, enquanto personagem. Talvez esse aspecto ficcional da sua prática política ofusque a memória impossível da sua atuação em experiência de gestão compartilhada na construção econômica, social e política, como ocorreu nos anos do Pacto de Cooperação do Ceará, na relação do governo com a iniciativa privada e a sociedade civil.
Essa memória de impulso cooperativo não chega tão fácil como chega a memória que o identifica com o tema da intolerância no debate político. A primeira está no fundo do palco e os holofotes estão sempre voltados para a boca de cena. Ciro, como a Geni, de Chico Buarque (“Geni e o Zepelim”), foi aplaudido quando indicado a ser prefeito e chamado às pressas para ser ministro, mas apedrejado depois que a ameaça passou. Por isso a figura da Geni, como metáfora do desprezo depois do gozo dos alienígenas.
O meu propósito com esta reflexão não é trasladar o seu perfil de herói para o de vítima, mas, sim, dizer que precisamos continuar contando com o Ciro do jeito que ele é, mesmo discordando de uma série de coisas que ele faz, fez, diz e disse. Se compreendermos que ele é um político que vive em dois registros, um ficcional e outro real, e que um não exclui o outro, veremos que não é tão difícil reconhecer que o Ceará precisa da sua impetuosidade e capacidade de realização.
Como já disse, temos no Ceará poucos políticos destemidos como Ciro Gomes. Sob o aspecto de sociedade, não é preciso ser a favor nem contra para reconhecer a legitimidade da sua vida e obra política. Logo, não há razão para desdenhar do seu valor e para desejar o seu fim. Pelo contrário, com Ciro em cena, do lado e do jeito que for, a dinâmica política é sempre mais animada.