O significado político do termo ‘negro’ está presente em muitas situações do jeito cearense de “viver a história na história”, mas ainda há forças intransigentes retardando essa compreensão. É um comportamento preconceituoso que se mostra reincidente a cada dia 25 de março, quando o Ceará celebra o fato de maior importância da sua história: ser a primeira província brasileira a se livrar da escravidão institucionalizada, em 1884.
Passaram-se 140 anos desse acontecimento e, em vez de tocarmos os tambores do orgulho dos nossos antepassados que lutaram pela Abolição, o que se escuta aqui e acolá é um coro desafinado tentando minimizar o alcance desse grande feito, alegando que o território cearense tinha poucos escravizados, que mantê-los cativos em períodos de seca era antieconômico ou que a exploração dos pobres livres era suficiente para os poucos canaviais e para as atividades da pecuária e do algodão.
Sabe-se que não é fácil superar os efeitos do racismo estrutural brasileiro. Travas à construção de massa crítica emancipadora ainda existem ante o valor simbólico desse fenômeno da libertação, independentemente das circunstâncias. Mas um dia o 25 de março, Data Magna do Ceará, certamente terá a expressividade que, desde a década de 1970, vem alcançando em muitos lugares o dia 20 de novembro, Dia Nacional da Consciência Negra, instituído como referência à morte de Zumbi dos Palmares (1655 – 1695).
O Ceará partiu na frente na questão política do negro, não apenas com a determinação de dar fim ao sistema escravocrata colonial, mas produzindo exemplos que merecem ser celebrados com reconhecimentos, artes, debates e mobilizações de cidadania por todo o estado, encorpando o 25 de março em uma só festa de negritude e antirracismo. A título de ilustração, menciono a seguir algumas dessas amostras substantivas:
O Negro Cosme (1801 – 1842), preto alforriado, saiu das margens do rio Coreaú e, seguindo as águas do rio Itapecuru, estruturou o maior quilombo da história do Maranhão, onde pioneiramente deu início à alfabetização de aquilombados. Em Fortaleza, o mulato Chico da Matilde (1839 – 1914), o Dragão do Mar, liderou a greve de jangadeiros que, em 1881, impediu a venda de escravizados para as províncias do Sudeste.
O maestro Alberto Nepomuceno (1864 – 1920), que era branco, republicano e abolicionista, sistematizou e levou o batuque para a sala de concerto, combinando a musicalidade preta com o que havia de novidade na música internacional; um ponto de fuga do que viria a ser a música negra na atualidade. No plano coletivo, muita gente parda se juntou para, desde a década de 1930, com cara pintada de preto, levar o maracatu em cortejo carnavalesco de solidariedade aos escravizados africanos e seus descendentes.
É relevante destacar que, concomitantemente ao teatro de rua do maracatu cearense e sua fraternidade entre semelhantes, foi também nos anos 30 do século passado que surgiu o movimento da ‘negritude’, propagado pelo pensador negro martinicano Aimé Césaire (1913 – 2008), que rompeu com os padrões biológicos da diferença, abrindo um campo fértil para o que chamou de “viver a história na história” e, já na década de 1980, focar na questão do racismo.
Essas expressões do Ceará Negro revelam uma intuição em favor das convergências de pretos e pardos, sem que seja necessário ter a pele retinta para ser uma pessoa negra. Não foi à toa também que, no início da década de 1960, quando governava o estado, o professor Parsifal Barroso (1913 – 1986), que era pardo, idealizou e lançou a pedra fundamental do Palácio da Abolição, que, inaugurado somente em 1970, durante o regime militar, abrigou em suas instalações o mausoléu do primeiro presidente da ditadura, quando seria (ou será) mais coerente ter ali um memorial da cultura afro-brasileira.
Fonte
Jornal O POVO