O discurso condicionante
Artigo publicado no Jornal O POVO, Caderno Vida & Arte, pág.4
Quarta-feira, 24 de junho de 2015 – Fortaleza, Ceará, Brasil
FAC-SÍMILE
Desde o momento em que passamos a nos interessar por futebol que somos influenciados por discursos condicionantes de locutores e comentaristas. A repetitiva transmissão de rótulos vai modelando ao longo dos anos a forma como organizamos a percepção que temos desse esporte, tão presente em todo o mundo, que acaba de entrar até nas disputas geopolíticas pelo controle da Fifa.
Mais do que um poder paralelo, decorrente de uma presença estruturada em mais de duzentos países – número superior ao de filiados à Organização das Nações Unidas (ONU) –, o futebol passou a ser um grande negócio na nova economia multipolar. E como tal, necessita de discursos que deem sustentação à sua lógica comercial de exibição de jogadores como produto.
Nas partidas em que participam atletas diretamente vinculados a essa extraordinária rede de compra e venda, é possível observar sempre a exaltação inquestionável, intensa e repetitiva a um craque e à superioridade do seu time, o que, em tese, se configura em gesto antidesportivo.
Um dos exemplos da prática do discurso condicionante foi a narrativa do canal Sport TV, da partida Argentina 1 x 0 Jamaica (sáb/20) pela Copa América. Mais do que dar a importância que a seleção argentina merece, locutor e comentarista passaram todo o jogo definindo a compreensão que a audiência deveria ter do que não estava acontecendo.
Logo no início da partida, quando Higuaín marcou o gol, o narrador começou a anunciar “uma grande goleada”. Tudo bem que poderia ser recurso para manter o interesse do telespectador. Entretanto, isso não justifica a omissão aos méritos dos jogadores jamaicanos.
O meia McCleary intercepta uma bola e o locutor diz que ele “levou uma bolada do Messi”. Em outra jogada, a eficácia da zaga é anunciada como obra do acaso e nunca da habilidade do atleta: “A bola explode no Morgan”. O goleiro Miller defende de forma brilhante uma tentativa de gol por cobertura do Messi e o locutor afirma que “Ele está se esforçando, mas é meio enrolado”.
Laing coloca a bola entre as pernas do Zabaleta e o Lawrence faz o mesmo com Garay, abrindo contra-ataques da Jamaica. O locutor alega: “Olha a marcação falhando” (…) “Uma coisa que se pode esperar do jogador jamaicano é velocidade”. No ataque argentino, o realce é outro: o Di María está “driblando, fazendo a festa”, o Pastore “deu um baile”, o Rojo está “esbanjando técnica”. Se a bola cruzada é defendida, ele não valoriza a defesa jamaicana; prefere dizer que “a zaga da Jamaica é muito alta”.
O visível incômodo do narrador foi maior no segundo tempo. “Será que vai ter goleada? (…) Por enquanto só um magro 1 x 0”, mas “dá para fazer 3, 4, 5 gols”. E lamenta: “Parece que o jogo está tão fácil que a Argentina não se esforça”. A posse de bola da Jamaica aumenta, o time mantém uma sequência de troca de passes e a torcida chilena começa a gritar “olé”. O locutor se desespera: “Os secadores estão aumentando”. O atacante Brown invade a área: “Será que a Jamaica vai fazer uma graça? (…) O risco da goleada agora é bem menor, já dá para fazer graça”, conclui o locutor em sua tergiversante narrativa.