Antes mesmo de falar, ela agachou-se e tirou os sapatos no palco. Pisou no chão com leveza e argumentou que fazia aquele gesto para registrar que era ela mesma que estava ali. Explicou que gosta de andar descalça porque o contato com o solo tem um valor inestimável: “Sem a terra não somos muita coisa”. Estava clara a mensagem daquela adolescente em seu contrafluxo da inconsciência social que busca a felicidade destruindo o meio ambiente.
Beatriz Mariano de Oliveira, 16 anos, foi a primeira colocada da edição 2023 do prêmio anual que leva o meu nome, realizado há quinze anos consecutivos pelo Espaço Cultural História Viva, entidade de professoras e professores de Independência, Ceará, município onde nasci. Em literatura rimada, e tendo como tema “A história do Brasil passa por Independência”, versejou sobre “uma gente guerreira”, “povos que se organizaram” e que “rumaram para o fim da exploração” e do destino detido “na mão da colonização”.
Após a leitura do cordel selecionado por avaliadores dos campi do IFCE, de Jaguaribe, Baturité, Ubajara e Fortaleza, Beatriz discursou, em improviso bonito, feito com emoção. “Falar em espaço aberto está na alma do povo, porque a história é nossa, a cultura é nossa, e, se não tomarmos consciência disso, sobra muito pouco (…) Como futura técnica em agropecuária, gosto de falar que a rebeldia é a semente e que a história é a raiz regada pelo sangue do nosso povo que foi derramado. A gente sangra sobre a terra, e a terra sangra sobre a gente”.
A historicidade como facho de leitura do mundo segue na palavra da estudante da Escola Família Agrícola Dom Fragoso (EFA): “Em meio a tanta coisa que é roubada da gente, que a gente possa ter consciência do que a gente é, e de quem nossos ancestrais foram, para que a gente possa entender para onde a gente está caminhando (…) O caminho é o que vale, e que, no caminho, a gente cultue a nossa história, os nossos ancestrais, a nossa arte e a nossa cultura, que é o que nos pertence por direito e por alma”.
Contou de um sonho recente que teve, no qual realizava o seu sonho de viver com pouco. Mesmo assim, apareceram interessados em comprar o que ela tinha, mas ela não aceitou porque, se aceitasse, estaria deixando que lhe matassem o que preserva. O sonho de Beatriz revela que, além de se trabalhar para a realização do que de fato desejamos, ainda temos de lutar para não deixar que sejamos roubados. Amar dá trabalho, principalmente para quem, como ela, ama a terra, os bichos, a natureza e as pessoas.
Em um tempo de imediatismo social gritante e de voz alta do consumismo, encontro nas claras ideias sobre o que fazer da vida manifestadas por Beatriz um exemplo concreto que pode ser relacionado à imagem que há muito tempo venho propondo para a Era a ser inaugurada após a hipermodernidade, que é a Metáfora do Lavrador: “O lavrador está mais afeito a respeitar a terra, a cultivar a simplicidade, a organicidade” (Bulbrax, p. 60, Armazém da Cultura). Escutei isso no aroma do campo e no senso de lateralidade do seu modo de falar da existência.
O discurso de Beatriz contrapõe-se, ainda, à situação de negação parental e escolar instituída pelo hedonismo de um mundo em que o amor filial e a educação não passam de empecilhos para a prosperidade acumuladora e geradora de desigualdades. Declarou a admiração pelos pais, que, mesmo morando a 120km de distância, estavam presentes naquele ato de premiação da filha; e a paixão que tem pelo lugar onde estuda e pelas trocas de aprendizado com colegas, educadoras e educadores.
Na semeadura do que precisa existir para a relação integrada do ser pessoa com o planeta, e em favor do usufruto pleno do que a vida oferece como construção de um sistema outro de valores, depoimentos abertos como o de Beatriz reafirmam que a perspectiva de viver bem passa pela reinvenção do jeito de ser da juventude.
Fonte
https://mais.opovo.com.br/colunistas/flavio-paiva/2023/09/04/o-discurso-de-beatriz.html