O que você faria se alguém que lhe extorquiu, coagiu e abusou sexualmente morresse e fosse homenageado como uma figura de destaque social? Cada pessoa tem seu modo de reagir, mas o desabafo da cantora Karina Buhr, que passou por isso, é uma boa forma de ir neutralizando o uso indevido da crença por parte de guias espirituais inescrupulosos. Com o título “Ele morreu e o inferno ressuscitou pra mim”, a artista publicou na internet uma resenha do tempo de horror em que esteve submissa à força do babalorixá Dito de Oxóssi, falecido em 15 de dezembro passado em Recife.
O relato de Karina torna-se mais perturbador porque ela tem uma imagem de artista esclarecida e audaciosa. A primeira impressão que seu depoimento passa é a de como uma pessoa assim pode cair tão cegamente no domínio de um aproveitador de fragilidades humanas, deixando-se escravizar por vários anos em corpo, mente e alma. Seu escrito é um alerta necessário a um mundo de relações fragilizadas, no qual parece imperiosa a necessidade de acreditar em algo, de seguir alguém, de se proteger em grupos, tribos e campos que se estendem da religiosidade à política. Mas, antes de tudo, essa mensagem é o compartilhamento de uma dor, marcada por forte indignação.
Karina Buhr conta detalhes amargos do processo de violência psicológica e de abusos físicos a que foi submetida por confiança incondicional a uma autoridade de devoção que transformou sua vida em um inferno. “Quando fui parar nesse lugar eu buscava alegria, cura e proteção em algo com que me identificava e de onde emanava uma força imensa”. Um dos elos para essa ligação foi o fato de a cantora gostar de tocar tambor. Já fazia isso em grupos de maracatu. E este foi um dos primeiros vínculos a que foi impelida a abandonar. “Da noite pro dia me vi totalmente dominada por uma estrutura que não me permitiria muito viver fora dela (…) Era difícil admitir que tanta maldade pudesse vir tão bem embalada em pacotes de beleza, música, interação, luta contra o racismo, exaltação dos orixás, da natureza”.
Ao tentar entender por que estava se permitindo fazer tudo o que seu algoz mandava, ela se sentia culpada. Se virava como podia para atender aos pedidos constantes de dinheiro feitos pelo guia, como ele mesmo ou em nome de alguma entidade por ele incorporada, assumindo dívidas enormes. “Eu era estimulada, de forma insistente, com muita intensidade a incorporar na prática os arquétipos do meu orixá e ir buscar e conseguir o ouro”. Amigos e familiares percebiam sua estranheza, mas ela tinha vergonha de contar, tanto porque achava que ninguém entenderia quanto por ter medo de que as entidades soubessem. “Eu tinha medo do meu próprio pensamento”.
Enquanto era explorada Karina recebia elogios que afetavam a sua vaidade e aspiração. Era apontada como “ogã por natureza”, posto hierárquico não permitido a mulheres, e escolhida como primeira ekede da casa. “Predestinada àquela função”, teria que cumpri-la sob pena de pagar caro com tudo dando errado em sua vida. É um relato triste, mas que vale a pena procurar na internet e ler, pois essa condição de ser usada, sem conseguir reagir, e de se sentir impotente “a ponto de considerar sua vida sem valor”, é um tipo de ação criminosa que acontece nos mais distintos espaços e de formas nem sempre percebidas.