O festival América do Sul
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno3, pág.3
Quinta-feira, 03 de Maio de 2012 – Fortaleza, Ceará, Brasil
A decoração da esplanada que se estende entre o casario do porto geral e o rio Paraguai me dizia alegremente que a cidade tinha se preparado com zelo para a festa. Luzes, decoração em tecidos coloridos, fitas brancas caindo das árvores com pingentes e versos oferecidos ao público, dois palcos e tendas de artesanato das nações sul-americanas formavam o cenário de realização do 9º Festival América do Sul, realizado em Corumbá no período da quinta (26) a segunda-feira (30) passadas.
No Palco das Américas, Dino Rocha, o rei do chamamé, e Osmar da Gaita, davam o tom da musicalidade pantaneira, enquanto o grupo boliviano Sávia Andina retribuía o acolhimento com a música do altiplano. Corumbá, que em tupi-guarani (Curupah) quer dizer “lugar distante”, assumia naquela noite linda de abertura do festival, o posto de capital cultural do continente e da arte da cidadania movida por música, teatro, dança, artes plásticas, cinema, literatura e artesanato.
O clima estava agradável, com pouco mais de vinte graus, para uma cidade conhecida por seu intenso calor de lugar com solo rico em calcário, situada no coração de uma reserva natural de planícies de áreas úmidas e alagadas. O calor em abundância naquela noite se resumia ao calor humano. Adorei saber que em Corumbá as pessoas se abraçam facilmente. A cidade de pouco mais de cem mil habitantes é bem cuidada, com ruas de paralelepípedo relativamente largas, um comércio que fecha ao meio-dia, mas que fica aberto até às dez da noite, e um patrimônio arquitetônico preservado dentro do possível.
O festival mexe com toda a cidade e a cidade funciona como sede do circuito de eventos que transborda à vizinha Ladário e às cidades bolivianas de Puerto Suarez e Puerto Quijarro. Corumbá está localizada no círculo geográfico central do continente, na região fronteiriça do Mato Grosso do Sul, estado que tem limites com cinco outros estados brasileiros (MT, GO, MG, SP e PR) e com dois países (Bolívia e Paraguai). A musicalidade e a dança popular nesse entroncamento cultural é rica em catira, polca, chamamé, rasqueado, caranguejo, sarandi, revirão, piriricão e muito mais.
No final da tarde tive o privilégio de ver um ensaio do coro, da orquestra e do corpo de baile do Moinho Cultural Sul-Americano, idealizado pela bailarina Márcia Rolon, presidente do Instituto do Homem Pantaneiro. Foi emocionante ver e ouvir meninas e meninos de oito a dezoito anos transcendendo pela arte à situação de vulnerabilidade social em que vivem. A peça apresentada recebeu o título de “Luna” e foi composta pelo maestro Leonardo Sá, numa construção de afetos e integração de linguagens, envolvendo as crianças e os adolescentes do projeto.
O movimento embalado pela encantadora “A cidade lunar”, música associada à passagem da “Lua Nova”, na peça de cinco partes regida pela sensível e diligente Noemi Uzeda, viúva do compositor, ficou em mim, está em mim, com sua evolução de força lúdica: “Era uma cidade / meio ao norte / meio ao sul / tudo se dançava / meio samba / meio blues / Olha, pensa, dança e conta / 1, 2, 3, 4 (…) Vem ver como é linda a cidade lunar (…) A lua é norte / a lua é sul / a lua é samba / a lua é blues”. “Luna” canta as fases da vida, os ciclos do viver e o seu incessante conflito entre o que é permanente e o que é vaidade. Curioso é que o autor morreu (2011) logo após concluir esse hino-metáfora pela elevação da auto-estima corumbaense.
Surpresa boa foi o encontro que tive com o performático Ricardo Kelmer (ex-Intocáveis Putz Band), com seu “irresistível charme de insanidade”. Ele me convidou para o sarau que faria no dia seguinte, voltado para a “Vida, música e poesia de Vinicius de Moraes”. Desconfiei se, tirando a parte etílica, isso daria mesmo certo, mas depois que ele me apresentou a cantora Vanessa Moreno, o violonista Daniel Conti e a produtora Célia Terpins, percebi que era valendo. E no dia seguinte fui me deliciar com o divertido show cênico-musical intitulado “Viniciarte”. A platéia que lotou o pátio do moinho riu, aplaudiu e certamente, como eu, aprendeu muita coisa que não sabia sobre o poeta.
A sessão do “Quebra-torto com letras” teve lançamento de livros, debates e muita comida. Quebra-torto é o nome do típico café da manhã pantaneiro, preparado com paçoca (feita com carne seca no pilão), jerimum cozido, feijão, arroz-de-carreteiro, sopa paraguaia (bolo de milho, com queijo, leite, ovos, cebola, manteiga e sal), bolinho de goma e chá queimado. Era mais que isso, mas é disso que lembro. Para quem gosta de comer, a culinária do pantanal é bem farta em carnes e peixes. Um grupo de entidades vem trabalhando inclusive a filetagem de piranha para fazer sashimi.
Pouco a pouco, a cidade vai construindo um sistema integrado de cidadania a partir da arte. Na área de música já existem parcerias com instituições de Berlim (um dos mais influentes centros de cultura da União Européia) e de Aveiro (cidade portuguesa de culinária maravilhosa, à base de frutos do mar, produzidos em alagados monumentais conhecidos como ria). O potencial das sonoridades pantaneiras é muito grande. Basta abrir as portas das salas de música do moinho que tem maestro regendo berrante, grupos de viola de cocho e um mundo a imaginar do que resultou da trama de culturas fronteiriças do Brasil de dentro, indo até as raízes ofaié-xavante, terena, caiuá e guarani.
O Festival América do Sul é um ambiente de circulação simbólica de um continente que, diante do novo redesenho geopolítico mundial, necessita de urgente integração plena, não só economicamente (Mercosul) ou politicamente (Unasul), mas no campo das experiências organizadas de cultura. Uma política continental que seja pensada e implementada com inspiração no diálogo cultural, mas articulada sobretudo dentro do que tenho chamado de cidadania orgânica. Algo que permita a constituição de pontos de vista claros sobre a condição de diversidade, interdependência e sistemas de valores éticos e estéticos presentes na função social da arte e da cidadania.
A experiência de Corumbá no estreitamento de vínculos e na relação de reciprocidade entre o Brasil e os vizinhos da América hispânica é um exemplo de que dá para fazer ou ir fazendo alguma coisa quando a sociedade chama para si a corresponsabilidade do desenvolvimento. O trabalho de consciência ambiental e de educação social pela arte, praticado pelo Instituto do Homem Pantaneiro e pelo Moinho Cultural Sul-Americano, em parceria com entidades e empresas locais e nacionais é uma prova disso. E tudo ganha expressividade quando há convergência de interesses públicos e privados na realização de eventos integradores, como o Festival América do Sul.
O conceito de encontro está impresso na programação. O público pôde ver no mesmo palco, no mesmo dia e na mesma hora, o cantor carioca (Paulinho) Moska e o cantor estadunidense-argentino Kevin Johansen; o acordeonista gaúcho Renato Borghetti e a cantora paraguaia Perla ou a viola caipira do sul-mato-grossense Marcos Assunção, o reggae e jazz da Orquestra Jungla portenha e a pegada sonora do cantor mineiro Milton Nascimento. Tudo entre palestras, exposições, oficinas, lendas e as charmosas sacolas de lonas reutilizadas de malotes de carteiros, com broches de libélulas de vidro reciclado pela Cooperativa Vila Moinho.