O futuro da mídia escrita
Artigo publicado no Jornal O Povo, Caderno Vida & Arte, página 8

Terça-feira, 27 de Junho de 2000 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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Tem-se discutido bastante que fim levarão os jornais com a evolução tecnológica e as novas mídias. Uma preocupação tão pertinente quanto questionar o que será feito dos jardins quando os geneticistas finalmente criarem a planta virtual. Jornais e jardins encontram-se ameaçados pela devoção incondicional ao artifício, em uma realidade contraditória e mutante. A mundialização impõe novas geografias para a mídia, entrecruzando linguagens, eliminando o sentido das culturas locais e promovendo a apropriação de objetos que conotam individualidade. Essa personalização do anonimato amplia a impotência social através da sensação de poder que a onda fugaz de escolha de estilo produz.

O futuro da mídia escrita passa pela compreensão desses valores. A mídia escrita é a liga das semelhanças que determinam o diferencial comunitário, seu saber, suas dúvidas e sua história. Sem ela a cultura é abafada pelo consenso unidirecional de construção da realidade. A confusão entre informação e comunicação é tamanha que chegamos ao ponto de nos considerarmos na “era do conhecimento”. Estamos muito longe dessa era. A revolução na transmissão de dados é espetacular mas, na prática, ainda não é comunicação. Comunicar pressupõe bilateralidade e troca de visões entre diferentes. O que vivemos é uma situação de grande potencial, limitada a pequenas ilhas de mentes adestradas. Fora isso, temos utilizado todo esse instrumental para definhar os repertórios locais e reduzir o sentido de pertencimento. A insistência nesse rumo poderá, na verdade, levar-nos, sim, à “era do desconhecimento”.

Os seres humanos são multimeios por natureza. Cada novo veículo que surge agrega possibilidades à comunicação. A imprensa não eliminou o patrimônio da oralidade. Pelo contrário, fortaleceu a vitalidade do seu conteúdo com a linguagem codificada, incluindo posteriormente artes plásticas e fotografia. O rádio valeu-se dos jornais, dos livros e do teatro para dar consistência à sua expressão instantânea. O cinema evocou as qualidades de cada um para o mundo mágico da telona. A televisão liquidificou tudo e jogou pelos ares e lares, inventando o consumidor passivo de informação. A rede mundial de computadores é mais um meio associado à essa rota metabólica da comunicação. Como nos demais casos, sua importância para as nossas vidas dependerá do conteúdo que formos capazes de veicular em sua teia virtual.

Para tornar a teoria “democrática” da internet em uma prática favorável ao bem-estar da humanidade, e não um monstro homogeneizador, precisamos cuidar de alguns dos seus vínculos básicos. A mídia escrita é o genoma desse cruzamento de meios. Nossos principais jornais já dispõem de páginas na web, numa atitude de complementaridade. Os serviços de consultas do tipo índices, cotações de moedas, resultados de loterias e notícias extraordinárias são atualizados a todo instante. Mas o tempo real carece do tempo para reflexão. As diferenças da versão impressa para a versão on-line não se encontram somente na entrega eletrônica da segunda. Necessitamos de ambas. Para exercer a cumplicidade de leitor, quando procuramos calmamente interpretações, análises, explicações comparativas dos fatos e curiosidades nas seções muitas vezes para nós secundárias, nada melhor do que folhear as páginas do jornal preferido. Para pesquisar em bancos de dados e ter acesso rápido a uma notícia, o jeito é ligar a máquina e navegar.

A demanda pela mídia escrita tem levado as empresas jornalísticas a tornarem-se cada vez mais multimídias. No Japão, terra da eletrônica e onde a população tem acesso a centenas de canais abertos de televisão, as tiragens dos jornais são elevadíssimas. Conforme divulgado no 53º Congresso Mundial de Jornais, realizado no Rio de Janeiro, na década de 90 a circulação média dos jornais diários brasileiros cresceu quase 70%. E novos jornais continuam sendo lançados no país. O conceito de mídia escrita sugere continuidade no crescimento da percepção do leitor. A informação solta, descontextualizada, estatística, pode até servir para quem possui arcabouço educacional e sabe medir os efeitos da sua dimensão. A maioria que se depara com esses drops informativos compensatórios não tem dados para qualquer discernimento em favor de si mesma.

Por ter a capacidade de atingir mais fundo o raciocínio das pessoas, a mídia escrita cumpre o papel fundamental de ser a proteína da informação no processo de definição do que queremos ser. Tivéssemos um projeto de sociedade e não de sobrevivência individual e concentração de riqueza e poder, criaríamos mecanismos para, pelo menos, fornecer uma assinatura de jornal a cada um dos professores da nossa rede pública de ensino. Com isso, estaríamos aguçando também a atualização e o senso crítico dos estudantes e forçando a imprensa a melhorar o conteúdo das suas páginas. Investir na democratização da informação, como reforço extra-didático, seria um enorme estímulo à participação. Porém, o distanciamento provocado pelos monitores de vídeo, postos nas escolas para pasteurizar estudantes e acabrunhar professores é bem menos perigoso. Sem ter como questionar as informações que recebemos, não teremos como iniciar um processo de comunicação e, muito menos, como manter o sonho de alcançar a era do conhecimento.