O julgamento de Macunaíma
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno3, pág.2
Quinta-feira, 18 de Outubro de 2012 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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O debate suscitado pelas condenações relativas ao esquema de pagamento mensal a parlamentares federais, subornados para votar conforme as orientações do governo, conhecido como mensalão, infelizmente tem sido reduzido a desavenças paroquiais de partido azul e partido encarnado (vermelho). A Ação Penal 470, conduzida pelo ministério público e julgada no Supremo Tribunal Federal (STF) é muito mais do que uma quermesse provinciana, animada por teorias de vingança e de conspiração. O que está em pauta é uma revisão do Brasil.

A histeria de apaixonados e de decepcionados, defensores do partido azul ou do vermelho, primariza o processo político e fere o ritual de maturidade democrática manifestado na atuação do STF. De um lado, os impetuosos simpatizantes do azul, herdeiros das sesmarias, que até chegam a tolerar, mas de fato nunca aceitaram a ascensão do Partido dos Trabalhadores (PT) ao poder; e, de outro lado, os impacientes militantes do vermelho, emergentes no exercício do manejo da máquina estatal, que não admitem a condenação por corrupção ativa de lideranças da sua organização política, como se um domínio de poder lhes estivesse escapando.

É compreensível a dificuldade de ambos os lados de se distanciarem das emoções movidas a interesses localizados, para pensar no que está acontecendo, como um ponto de inflexão do amadurecimento da democracia brasileira. O fato de o julgamento do mensalão não ter influído significativamente nos resultados das eleições, demonstra que a população não aceitou a polarização paranoica das duas partes. A vibração manifestada publicamente pelas condenações não parece voltada para dar razão a um ou outro lado, mas parece expressão de um sonhar com políticos de princípios admiráveis.                 

A frustração da parte da sociedade que jogou suas expectativas no discurso de moralidade do PT e que foi desapontada pelas práticas delinquentes dos maus-petistas também precisa ser considerada. O olhar esperançoso não se contenta facilmente com alegações do partido vermelho de que a corrupção é um velho hábito do partido azul. Em algum momento o País teria que dar um basta emblemático à corrupção e, em qualquer tempo que ele fosse dado, haveria sempre os que se perguntariam, como muitos estão se perguntando atualmente: “Mas logo agora, na minha vez?”.

As condenações de José Genoino e de José Dirceu pareceram as mais comoventes porque as ações criminosas pelas quais eles receberam a sentença do Supremo poderiam, em licença jurídica não recomendável, serem classificadas de “suborno do bem”, considerando que a manutenção de uma “aliança pecuniária” do governo com a base aliada, aceleraria a consolidação do partido vermelho no poder da República, tendo, nessa alegoria, Dirceu como natural sucessor de Lula na Presidência. Entretanto, na justiça, essa prerrogativa não tem validade e o STF declarou culpado o núcleo político da operação do mensalão, com base na teoria do domínio funcional do fato.

É realmente lamentável e até doloroso ver um respeitado líder político, de visão social altruísta e querido como pessoa, como o Genoino, numa situação dessas; porém, independentemente de existência ou não de “ato de ofício” não foi outro o presidente nacional do PT que participou de reuniões em que foram assinados empréstimos e dado avais para fazer valer o mensalão. Por sua importância no planejamento, no comando e no poder de decisão do partido, não há como fazer coro à sua credulidade.

José Dirceu procurou imprimir um cunho emocional ao resultado do veredicto do STF, compartilhando sua cinematográfica biografia de feitos ideológicos e apelando para uma espécie de retórica getulista do suicídio glorioso e sua incontida vontade de poder. Dentre outros motivos, diz que “a hipocrisia que meus inimigos lançaram contra mim nestes últimos anos será minha razão de viver”. Na sua carta de despedida, Getúlio Vargas (1882 – 1954) escreveu: “Deixo à sanha dos meus inimigos, o legado da minha morte”. Como se pode observar nessa comparação, o vulto de Dirceu tem relevância, mas ele está fora de tempo; é um político à moda antiga, adepto de métodos inadequados aos atuais desafios da democracia brasileira.

O Brasil não cabe mais na quermesse dos partidos azul e vermelho. Neste aspecto não é nada delirante observar o mensalão como uma expressão de passagem para um novo ciclo de renovação política, que tem no PT nomes respeitáveis como o de Tarso Genro, Fernando Haddad e da presidenta Dilma Rousseff, com sua república feminina, comprometida com o País no concerto das civilizações. “Na última década, adotamos um modelo de desenvolvimento baseado no crescimento, na estabilidade e na inclusão social. Hoje somos a sexta economia mundial e estamos nos tornando um país de classe média, oferecendo oportunidades para todos os brasileiros” (ROUSSEFF, Dilma. Um país justo e desenvolvido. Carta Capital, p. 38, 03/10/2012).

O ex-presidente Lula, como diz em tom espirituoso o secretário-geral da Presidência da República, Gilberto Carvalho, é o “Pelé” desse processo, que está espontaneamente no banco de reservas. Em que pese alguns exageros da sua autoconfiança quase ilimitada, convém ressaltar que ele foi o primeiro presidente do Brasil, com modelo mental brasileiro (2003 – 2010), e que mesmo com elevada popularidade no final do seu segundo mandato (83% de aprovação), evitou comprometer a democracia negociando mais tempo de mandato. Sem contar com o grande feito de ter escolhido e indicado o nome de Dilma Rousseff para sucedê-lo na condução do País.

Pensando grande, o que o Supremo Tribunal Federal está condenando é o toma-lá-da-cá, a política do pragmatismo e do poder do dinheiro sobre a ética. A sentença condenatória contra o mensalão simboliza uma negação aos “laranjas” e à impunidade dos espertalhões que nunca aparecem, que nunca deixam provas e que nunca vão para o xilindró. “Por mais que se possa criticar o cerco midiático ao STF no processo do mensalão, por mais que se possa discordar da avaliação das provas, da inovação de teses para proporcionar condenações, da politização excessiva do processo, ninguém pode dizer que os ministros da nossa corte suprema estão julgando contra as suas convicções ou insuflados por pressões insuportáveis” (GENRO, Tarso. Utopia Congelada. FSP, p. A3, 30/09/2012).

O principal símbolo revelado nesse rico momento de influência a uma mudança de hábitos na vida política brasileira é a figura do ministro Joaquim Barbosa, o relator do mensalão. Indicado ao STF, em 2003, pelo então presidente Lula, declara que votou em Lula e Dilma, mas como magistrado mantém-se equidistante das ambições dos partidos azul e vermelho, priorizando a justiça de interesse público em suas decisões. Além disso, ele tem demonstrado em suas atitudes a consciência de que, como negro, tem a obrigação de honrar mais ainda a magistratura, sob pena de abrir espaço para ilações preconceituosas.

A trama e o drama do mensalão representam o julgamento de Macunaíma, o mito criado pelas lentes modernistas de Mário de Andrade (1843-1945) para traduzir um país que, nos idos da primeira metade do século passado, ainda não parecia ter identificações suficientemente maduras a ponto de se definir. Ao condenar o mensalão, o STF está sinalizando que, aos olhos da justiça, espaço para Macunaíma e seu papagaio só mesmo na literatura. O Brasil de hoje tem uma cara respeitada no novo cenário global e tem um presente cheio de oportunidades para fazer funcionar. Que as condenações feitas pelo Supremo respondam aos anseios do povo brasileiro e que contribuam efetivamente para inibir o que existir de corrupção presente nas várias esferas da vida pública brasileira.