O livro das essências
Artigo publicado no Jornal O Povo, Caderno Vida & Arte, página 6
Terça-feira, 21 de Novembro de 2000 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Toda vez que lanço um trabalho passo por um processo de depuração autoral sentimentalmente engraçado. É quase um namoro que precisa chegar ao fim para poder começar. Sinto uma necessidade enorme desse flerte do desapego. O processo de elaboração é tão envolvente e tão revelador do nosso ser que, independente da área abordada e da natureza da obra, publicar é reproduzir milhares de vezes para o desconhecido parte da nossa intimidade e do seu jeito de observar e sentir o mundo. A multiplicação neste caso contribui para tornar única a obra para a qual o autor dá o máximo de si. A despeito das circunstâncias e do grau de amadurecimento do olhar de quem se expõe, a liturgia da publicação deve ser seguida de um “Hoc est corpus meum”. Uma obra parece mais verdadeira quando o autor pode dizer “isso é o meu corpo”.
Sempre gostei de apreciar o mundo reformulando as informações que me chegam a todo instante. Faço isso com naturalidade. Nas oportunidades que me aparecem ou que crio para ter o prazer de retribuir esse aprendizado em forma de disco, livro, vídeo, histórias em quadrinhos, palestras e nas mais variadas publicações que tenho participado, procuro estar presente com inteireza, como forma de valorização do esforço, respeito ao outro e, só assim, poder sentir que vale a pena transbordar. O risco do ridículo, do inoportuno e da incompreensão andam lado a lado com a sinceridade autoral e com as nossas limitações e poder de expressão. Mas não sei conjeturar até que ponto faz sentido produzir obras por outros motivos.
Uma das coisas que mais me intrigam, com toda a evolução da humanidade, é o quanto ainda permanecemos com a atração de procurar por defeitos tendendo a ser mais exaltada do que o prazer de encontrar soluções. Esse senso tem promovido a treva e concedido poderes imensuráveis aos que turvam a existência. Talvez a inversão dessa ordem que privilegia a destruição seja a mais estimulante das tarefas que precisamos assumir no século XXI. Mais estimulante do que o aumento da longevidade, pois viver com satisfação, sentido e qualidade é bem mais sensato do que viver por muitos anos. Vital Farias diz em sua antológica Saga da Amazônia que “O que se corta em segundos gasta tempo pra vingar”. Temos que começar a procurar compreender com profundidade percepções como esta contida nos versos do inspirado compositor paraibano. Torna-se mais factível construir um mundo mais justo e melhor. Não deveríamos atribuir às nossas obrigações de seres sociáveis nada que fosse incompatível com a nossa condição de mortais.
Faço essa reflexão no momento em que aprecio, com o típico olhar apaixonado de despedida, a capa do livro que estou lançando em parceria com o João de Paula Monteiro. “Os 5 Elementos – a Essência da Gestão Compartilhada no Pacto de Cooperação do Ceará”. Tento ler o título como se eu fosse um desconhecido. A capa elaborada pelo professor Jesuíno, com o jogo rupestre e futurista que ele fez com as ilustrações do Mário Sanders, é encantadora. Bate forte a emoção incontrolável de cearensidade. A mesma pulsão que nos levou a praticamente exigir da editora Qualitymark que esse livro tivesse a cara do Ceará. E tem. Entre erros, acertos, medos, ousadias e condições desiguais de batalha, somos uma sociedade que teima em tirar dos ombros o peso histórico da submissão colonial. Falta muito. Muito mesmo. O fantasma das sesmarias ainda assombra a cultura brasileira.
Nos quase dez anos de existência do Pacto de Cooperação, João e eu acompanhamos de perto os altos e baixos do espírito quase biológico desse movimento. Temos informações suficientes para escrever um trabalho demolidor sobre essa experiência. Bastaria engendrar por qualquer viés ideológico, de direita ou de esquerda, para apontar suas inúmeras imperfeições. Bastaria também tentar enquadrá-lo nos métodos e procedimentos dos paradigmas organizacionais, para corroer a sua legitimidade lógica. Mas, como já disse, é muito fácil encontrar defeitos; mais cômodo ainda é apelar para o ceticismo. Acho que a liga mais consistente que nos uniu para escrever esse trabalho em parceria foi a vontade de investigar os efeitos da convivência, sistemática e com diversidade, possibilitada pelo ambiente do Pacto.
Embora discordando um do outro com relação a muitos aspectos do movimento, conseguimos fazer um recorte daquilo que consideramos comum para nós, enquanto valor disponibilizável dessa ação de cidadania, que é a sua essência de Gestão Compartilhada. Pareciam intermináveis as nossas discussões na busca do que poderia caracterizar o Pacto como uma expressão genuína de esforço cidadão, que tanta curiosidade vem causando a lideranças de tantos outros lugares. O caráter orgânico, responsável pela sobrevivência desse fenômeno, dava muitas pistas mas era como se a gente quisesse saber dos cinco sentidos tendo como objeto de estudo a sensação térmica, o pressentimento e a lembrança prazeirosa, dentre outros estímulos abstratos.
Da mesma maneira que a química aplicada descobriu a cumarina, o âmbar sintético e os aldeídos para a produção de fragrâncias espetaculares, a união de cabeças diferentes com disposição de construir uma nova cultura preparou os seus óleos essenciais extraídos do mistério da sinergia dos contrários. Foi divagando por esse campo, de fonte primária, que conseguimos, enfim, chegar aos elementos da Cooperação, Pluralidade, Informalidade, Virtualidade e Catálise, como síntese do espírito de uma experiência incipiente de mobilização, que se desenvolve nas interfaces dos agentes da sociedade civil, do estado e do mercado para a construção de convergências. Como mecanismo de inclusão pelo diálogo e pelo consentimento, os “5 Elementos” sugerem que estamos com um bem de gestão compartilhada em nossas mãos. O que vamos fazer desse achado só o futuro dirá.