O lúdico e autobiografia
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno3, pág.3
Quinta-feira, 10 de Maio de 2012 – Fortaleza, Ceará, Brasil
O que faz uma pessoa ser única é o fato de ela ser formada por si e por muitas partes de outros. Assim é com todo mundo, embora isso não seja fácil de aceitar, em decorrência do receio que temos de ser tragados pelas nossas diferenças sociais, culturais, físicas e intelectuais. Mas, querendo ou não, só existe o “eu” porque existe o “outro” e as relações sociais. Quanto mais nos relacionamos, quanto mais compreendemos que o contato estabelecido entre pessoas faz parte da constituição do si, mais nos integramos plenamente ao contexto das transformações sociais.
A busca desse “outro” e do seu lugar na constituição do si acaba de ganhar dois caminhos de reflexões e análises, com o livro “Alteridade – o outro como problema” (Ludice, 2011), organizado pelas psicólogas Fátima Vasconcelos e Érica Atem e lançado na quinta-feira passada (3/5) no auditório da livraria Cultura em Fortaleza. Nessa perspectiva, o caminho do lúdico e o caminho da autobiografia são trilhados por mais de 20 autores e pesquisadores do programa de pós-graduação em Educação Brasileira (UFC) e de outras universidades brasileiras.
A reconstrução de experiências vividas, como forma de colocar na roda os diversos “outros” da nossa singularidade está na essência do primeiro e do quarto capítulo e é oferecida pelas organizadoras como linha mestra do trabalho. Ao tratar do fato de sermos como somos por resultarmos da interação com outros indivíduos, grupos, comunidades e civilizações, a linguista Maria Conceição Passeggi sintetiza a importância das narrativas (auto)biográficas nos esforços de problematização da alteridade. Afirma que “se formar” é levar a sério a reversibilidade do trabalho de reflexão sobre si mesmo, realizado durante o processo de “biografização” (p. 35).
Identifiquei-me imediatamente com essa abordagem, provavelmente porque o recurso da narrativa (auto)biográfica está presente em todo o meu trabalho, sobretudo na construção literária e musical para crianças. Mas o segundo e o terceiro capítulos me atraíram repentinamente por recorrerem às práticas do brincar na busca do entendimento das diferentes manifestações do ser-o-outro, como substância elementar do “eu”, e da crítica aos exageros da racionalidade científica que, ao produzirem o discurso competente e incensarem os donos da voz, acabam perdendo a experiência do contato e a sensibilidade distintiva entre o que está no cognitivo e o que está na afetividade e nas emoções.
A ação comunicativa na cultura da infância ocorre na liberdade que a criança tem da aprendizagem imitativa e de evocar suposições para com elas assimilar o mundo e a vida social. Como isso se dá nas circunstâncias de simulação em que o outro é digital e o seu lugar de “circulação” é virtual, é o curioso e oportuno tema abordado pelas psicólogas Márcia Duarte Medeiros e Fátima Vasconcelos. Elas procuram depreender “como a subjetividade se organiza neste enquadre relacional” (p. 91) de experienciação mediada pela tecnologia digital, onde a identidade virtual (avatar) funciona como um segundo “eu” na instabilidade do “outro” e da própria comunidade de pertencimento.
Na interface digital das telas as autoras observam o quanto multiplicamos a nossa heterogeneidade mutante, por meio de possibilidades oferecidas pelos programas e aplicativos. Questionam se o faz-de-conta nos ambientes eletrônicos seria uma situação imaginária, ao abrigo dos efeitos da realidade, e se, nesses casos, a criança estaria apenas submetida à lógica da programação, ao contrário da sua condição quando em estado de jogo simbólico. Particularmente, penso que a criança sabe que é jogo e, preservada de exposições maiores do que as normais, também sabe que jogar é diferente de brincar. Nessa pegada, o livro vai refletindo e fazendo refletir, ora como “eu” e ora como “outro”.
A afirmação dos ambientes de virtualidade como contextos socioculturais, “descartada a ideia de considerar os mundos virtuais como não-lugares” (p. 100), é uma solução metodológica de grande valor “netnográfico”. Deste modo, ficou bem mais natural a realização da pesquisa de campo com indivíduos e grupos que frequentam ambientes virtuais. O que não bateu bem com a minha percepção – e aqui mais uma vez o livro exerce o papel dialógico do “eu” e do “outro” – foi a definição da internet como um lócus. A internet é um sistema de comunicação em rede e não um lugar. Afinal, os círculos de convivência acontecem em espaços como as salas de bate-papo, nas praças de encontros disponibilizadas pelas empresas de serviços de relacionamentos e nas estações de jogos.
Em “Alteridade – o outro como problema”, encontramos recortes de pesquisas que entrelaçam o lúdico e o (auto)biográfico na produção de insights de interpretação da condição humana. Como para mim a alteridade, mais do que uma qualidade relacional de produção do si, é um ato virtuoso a ser perseguido na busca de alternativas sociais e ambientais para a pós-hipermodernidade, inclusive na aproximação da cultura com as mensagens da natureza (A consciência ecoplanetária, DN, 26/05/2011), livros como este do Ludice (Ludicidade, Discurso e Identidades nas Práticas Educativas), são fundamentais pelo que têm de perscrutador e de abertura para o debate.
Toda verdade é provisória e o bom da ciência é saber dessa verdade. Assim, Érica Atem pôde ficar livre para investigar aspectos da “aliança científica” pela “nova infância”, organizadas no plano discursivo do enunciado “Dar voz a criança”, flagrado por vezes em recrudescimentos adultocêntricos. A “criança cidadã”, a “criança protagonista”, a “criança testemunha” e “a criança ator social” (p. 181) são algumas das expressões decorrentes da pidginização do pensamento especializado sobre a infância. A autora questiona os diagnósticos e as prescrições que consideram apenas os efeitos produzidos por essa unanimidade: “a criação de políticas para dar voz à criança” (p. 182), e a moral racional de uma epistemologia pouco afeita à valorização do desejo, da empatia, da afetividade e dos sentimentos (p. 191).
Os riscos da guetificação do mundo da criança, sob apelos como “crianças por elas mesmas” e “propiciar que as crianças falem por si”, postos por Érica Atem, abrem uma janela no ponto de alteridade em que, na sua investigação sobre memórias de brincadeiras, realizada na praia de Guriú, a pedagoga Maria da Glória Feitosa Freitas, constata que “as escutas das lembranças dos idosos e dos adultos informaram sobre um papel essencial do adulto nas práticas lúdicas infantis” (p. 79). Para enxergar outras possibilidades nesses discursos intercorrentes e multirreferenciais Érica propõe o deslocamento do enunciado “dar voz a criança” da sua posição de “resposta” para a de “problema” (p. 194).
A questão da cultura lúdica na educação, abordada pelo psicopedagogo Genivaldo Macário de Castro, chama a brincadeira como modalidade discursiva na práxis da docência, pela (auto)biografia dos próprios educadores, suas “experiências fundadoras e experiências formadoras” (p. 226). Essa conversa logo chega aos linguistas Benedito Alves e João Batista Gonçalves, que analisam as aplicações do termo “lúdico” nos documentos oficiais e seus significados voltados à estética, diversão, lazer e ferramenta didático-pedagógica (p. 118). E a socióloga Celeste Cordeiro critica “o abandono de outras dimensões humanas ligadas ao espírito da ludicidade” (p.74), reforçando que o tema é bom e urgente.