O lugar dos games de arte
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno3, pág.2
Quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Tomei interesse em conhecer melhor o que está se passando no mundo dos videogames de arte. Inicialmente fui movido pela condição de pai, querendo saber o motivo da empolgação dos filhos em tempos de puberdade, com relação a esse tipo de jogo eletrônico. Fiquei impressionado com as possibilidades desse ambiente de plasticidade digital e com a sofisticação do que vem sendo feito. Mais do que um fenômeno de consumo de massa, voltado para o mercado do entretenimento em logradouros virtuais, os videojogos já ocupam lugar de destaque entre os canais de formação dos sentidos.
Procurei compreender um pouco o Assassin’s Creed (Credo dos Assassinos), um jogo que reúne na mesma narrativa dois graves e sensíveis temas da atualidade: o crescimento da violência e das organizações religiosas. É um game seriado, no qual o jogador assume a memória genética dos ancestrais do protagonista, tornando-se, assim, o executor da sua missão no passado. A ação no tempo distanciado, mas presente, faz as vezes de “túnel do tempo”, possibilitando ao usuário uma espécie de amortecedor de consciência para a prática da agressividade.
No Credo dos Assassinos, o jogador assume o papel de Desmond Miles, um balconista de bar que é raptado por descendentes da ordem religiosa e militar católica dos Templários, que ainda estaria vigendo. Como Miles assume a memória de Altaïr, um integrante de uma irmandade, também religiosa e militar islâmica e também ficcionalmente em vigor, a ação do jogador passa a ser diretamente com Altaïr, na Idade Média, em plena guerra entre Templários e Assassinos, entre cristãos e muçulmanos.
O jogador vai recebendo missões para se infiltrar em lugares proibidos, espionar, saquear e para matar seletivamente os rivais, de forma a libertar cidades como Damasco, Jerusalém e Acre da influência dos Templários. O credo que o move no combate santo é de que Nothing is true, everything is permitted (Nada é verdadeiro, tudo é permitido). Pelo contexto, o verdadeiro aí está ligado à noção de fragilidade dos fundamentos sagrados e sociais defendidos pelos Templários.
A narrativa tem chamamento literário, embora a ação guarde os limites imaginativos programados. Em contrapartida, juntam-se ao seu design e conceito os recursos das histórias em quadrinhos, do cinema de animação, da música, das artes plásticas, dos cenários e contextos históricos. Trata-se, portanto, de uma forma de arte contemporânea, com potentes artifícios de agregação e de projeção em multitelas, que serve também de plataforma de difusão das outras artes e da própria literatura.
Por terem se tornado economicamente mais lucrativos do que os produtos da indústria do cinema e da música, os games estão, do modo geral, redesenhando as estratégias das corporações do entretenimento e revolucionando o mundo da nova indústria, da economia criativa e do mercado de conteúdos. O tripé de sustentação da indústria do audiovisual passou a contar com a animação, os games e os aplicativos destinados a suportes fixos e móveis.
Embora a Nintendo tenha introduzido a narrativa nos games, com o Donkey Kong, em 1981, no qual o jogador assume o comando da ação do personagem Mário na sua luta para resgatar uma moça refém de um gorila, a agregação de enredo à jogabilidade ganhou destaque na última década. Em 2000, a Sony lançou o PlayStation, no ano seguinte (2001) a Microsoft chegou com o Xbox, a Nintendo fez o portátil DS, em 2004, e, em 2009, a Apple acoplou plataforma de games ao iPod, que antes era especifico para tocar música.
A indústria mundial de games não é formada somente por fabricantes. O mercado de desenvolvedores de jogos já tem também as suas grandes corporações multinacionais, como a EA (Fifa13), a Konami (PES), Capcom (Street Fighter), Blizzard (World of Warcraft) e a Ubisoft, proprietária do Assassin’s Creed. O caráter de atuação global dessas empresas se dá no consumo e na produção. Na abertura do “Credo dos Assassinos” está escrito: “Inspirada em acontecimentos e personagens históricos, esta obra de ficção foi elaborada e desenvolvida por um time multicultural e de diferentes crenças religiosas”.
Do ponto de vista econômico está tudo em franca multiplicação de produtos, serviços e concentração de ganhos nos bolsos das grandes corporações transnacionais. Entretanto, a evolução dos videogames, especialmente os que possibilitam experiência estética, pede que a sociedade discuta mais como estimular a liberdade de expressão artística nesses meios, diversificando os temas abordados e explorando outras sensibilidades, a fim de que algo tão extraordinário não fique à mercê dos apelos de venda fácil, tirando partido da violência, da intolerância religiosa e de outros lixos simbólicos.
Como todas as outras mídias, os videogames são criações da inteligência humana que, através do uso da técnica, atendem ao que a sociedade lhe oferece como lugar. A diferença está no conteúdo, na acessibilidade prática e na matéria-prima constituída de inteligência, criatividade e capacidade de narrar. Isso merece a intensificação das políticas públicas que estimulam a juventude a pesquisar para produzir trabalhos de qualidade. Suspense, ação, guerra, amor, comédia, drama, mistério, terror, pornô, épico, enfim, todos os gêneros das outras artes e da literatura cabem nos games. Os jogos eletrônicos são instrumentos muito potentes para ficarem entregues apenas ao mercado.
A influência cultural e ideológica, que antes chegava às crianças dos países periféricos pelos canais das corporações de entretenimento, através das histórias de príncipes e princesas, está agora atrelada ao mercado de armas e de videogames. E o garoto-propaganda do momento é o príncipe Harry, neto da rainha Elizabeth II, da Inglaterra. No final do mês passado, ele foi destaque no noticiário internacional após declarar que matar pessoas afegãs foi tão excitante quanto num jogo eletrônico. Esse rapaz da realeza britânica foi enviado ao Afeganistão para desestressar matando gente de verdade, depois de se envolver em escândalos, como o do uso de um bracelete com símbolo nazista em uma festa à fantasia.
Ao tomar conhecimento desse “feito” do nobre garoto de 28 anos, fiquei pensando na inveja que ele não deve ter causado a jovens gamers de todo o mundo, por poder matar de verdade, numa diversão em helicóptero Apache de verdade. Na reportagem “Harry, um príncipe matador de talibãs” (O Globo, p. 24, Rio de Janeiro, 22/02/2013), li um depoimento de arrepiar: “Um comandante insurgente descreveu o príncipe como um chacal bêbado e ávido por matar inocentes afegãos”. A cultura do exterminador, incorporada em jovens como o príncipe Harry, faz parte de algo mais profundo do que a violência dos games, que é o mercado de segurança.
Comecei a me dar conta disso quando fui com os meus filhos a uma Super Amostra Nacional de Animes (Sana Fest) e vi que o patrocinador era uma empresa de segurança (A idolatria da violência, DN, 14/04/2011). Assim como no auge de Hollywood, a indústria do tabaco investiu diretamente no cinema para produzir uma geração de fumantes, a indústria bélica está investindo nos games para criar consumidores de armas. No primeiro caso, do cinema, o merchandising teve como atração o charme do cigarro na vida de atrizes, atores e personagens; no segundo caso, dos games, o apelo é o medo e a guerra entre gangues.
A aproximação com o mercado de armas pode ser um complicador na evolução dos games. Causou uma polêmica aquém do devido a associação feita pela EA (Electronic Arts) no portal de lançamento do jogo Medal of Honor – Warfighter (Medalha de Honra – Combatente), com catálogos de fuzis de atiradores de elite, munição e acessórios de armas de assalto e exposição de marcas da indústria das armas utilizadas no jogo. Não tem volta, o jeito é a sociedade se apropriar dos games, dando a eles um lugar de arte da era digital, voltada para o lazer, a recreação, o entretenimento e a educação. Mais do que uma experiência estética, uma experiência social.