O lugar dos pontos de vista
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3
Quinta-feira, 24 de Fevereiro de 2011 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Na ficha catalográfica do livro “O ponto de vista do outro” (Garamond, RJ, 2010), do psicanalista pernambucano Jurandir Freire Costa, pode-se ver “Ética e Literatura” e “Psicanálise e Literatura” como expressões-chave. A literatura assume nessa obra o papel catalisador de distintas visões acerca do campo por onde gravita a crise de significados que se impõe como um dos maiores desafios civilizacionais da atualidade.
O autor recorre as “Figuras da ética na ficção de Graham Greene e Philip K. Dick”, como aparece explícito no subtítulo, para aproximar o leitor do entendimento do elemento discursivo, ao tratar as mais distintas dimensões do problema por meio de correspondências identificadas entre as ideias de pensadores que se debruçaram sobre a questão da ética e da moralidade e a sabedoria prática dos personagens desses dois escritores.
A circularidade estabelecida por Jurandir nos leva a tangenciar cada página com a sensação de que a fronteira do humano está na própria capacidade que temos de reconhecer e considerar o respeito aos nossos semelhantes como a perspectiva definidora do horizonte do Bem e do Mal. Desse modo, a explicação do mundo, da vida e dos poderes da mente ganha relevo com o recurso literário enquanto lugar no qual a racionalidade e a espiritualidade se complementam.
A obra de Jurandir Freire Costa é um olhar de alento diante dos constantes e intensos escândalos de toda ordem de decadência ética nas esferas pública e privada e diante da visível perda das funções normativas sociais da tradição moral judaico-cristã. Por que um olhar de alento? Porque o autor acredita que, apesar de tudo, o discernimento moral ainda resiste. E para respaldar sua convicção, ele recorre às histórias de aventuras, espionagem e aos melodramas de Greene (1904 – 1991) e à ficção científica de Dick (1928 – 1982), nos quais a essência da ética se expressa frente à impossibilidade.
Evidente que, para isso, o autor toma como referência algumas teses e previsões sociais que marcaram o último século, modelando muitas vezes um determinismo catastrófico a respeito de uma sociedade que passou a conhecer o preço de tudo e a não saber o valor de nada, por ter perdido a habilidade de sentir ou pensar profundamente. Grosso modo, são basicamente quatro as correntes éticas delineadas por Jurandir em seu exercício reflexivo da contradição:
a) o diagnóstico pessimista próprio dos “intelectuais de estufa”, que produz um sentimento de inermidade no controle de tudo o que a própria sociedade criou;
b) a vinculação do declínio ético às ideologias de mercado, que planifica o egoísmo a ponto de sobrepujar a “vergonha” por ultraje à vida pública e a “culpa” por males feitos ao outro na vida privada;
c) a defesa da revolução laica dos costumes, que retira de cena a mentalidade religiosa, mas, com seu foco exclusivo na investigação científica, não consegue resposta às questões do sentido da vida;
d) a convicção de que os dilemas éticos e morais contemporâneos ainda podem ser pensados por vieses leigos e espirituais do Ocidente, que não foram contemplados pelas crenças de predestinação nem pela racionalidade iluminista.
Jurandir Freire localiza-se nessa última corrente, onde o significante teima em não ceder à pressão das mudanças de significado. No livro “O ponto de vista do outro” ele coloca a falta de sentido como um obstáculo às decisões morais. Talvez por isso tenha ido buscar sentido na trama de personagens da literatura livre de erudição. Nos enredos do inglês Greene e do estadunidense Dick ele conseguiu, com admirável insubmissão, problematizar o tema nos conflitos dos personagens, livrando-se de uma só vez de obedecer à cartografia acadêmica e os referenciais críticos dos clássicos da literatura.
A empreitada resultou em um trabalho bom de ler e extremamente necessário nas circunstâncias atuais, quando para muitos o egoísmo social venceu as utopias, o amor, a política e o sentido de destino. Para tratar desse cenário de desencanto Jurandir movimenta a figura do “self entrincheirado”, que é o indivíduo que se sente livre para fazer escolhas, mas sem condições de assegurar que toma a opção correta, por ser psíquica e moralmente equidistante dos valores autênticos da sua coletividade.
No começo da leitura fiquei inquieto para saber o que o autor viu nos personagens em referência que reforçou a sua expectativa de que ainda não estamos com o discernimento moral comprometido. É que também trago comigo essa sensação, mas ainda não tinha conseguido encontrar uma luz que clareasse o meu sentimento. Pelo ponto de vista de Jurandir Freire Costa, descobri que mesmo saturados de dúvidas com relação ao que fazem e com fronteiras turvas, flutuantes e embaçadas separando o certo do errado, o justo do injusto, os personagens de Greene e Dick, não são indiferentes à frágil e inconstante condição humana.
É isso, assim como esses personagens, muitas e muitas pessoas ainda não se tornaram indiferentes, em que pese a banalização sistemática da ética e da moral e, no caso específico do Brasil, a anestesia dos movimentos de cidadania derivada das recentes conquistas sociais, econômicas e políticas. Ao trabalhar com histórias cativantes e exemplares, Jurandir tem o cuidado de observar que, na condição de experimento de pensamento, o objeto ficcional não é protótipo a ser reproduzido, apenas um estímulo à imaginação, ao encantamento, à emoção e um desafio para o agir ético.
Na parte em que o autor reproduz a dificuldade do inspetor Henry Scobie de cumprir a meta impossível de continuar amando a sua mulher, especialmente depois de conhecer Helen, a ponto de se revoltar contra o Jesus crucificado, acusando-O de poder sofrer em público e ele (Scobie) não, Jurandir ilustra com acertada concisão o cerne da questão, na reelaboração literária de Graham Greene: só existe amor justo quando nos tornamos sensíveis ao ponto de vista do outro. Mas o ponto de vista do outro “inexoravelmente surge no caminho como um inocente assassinado” (p. 105).
De Philip K. Dick, o livro “O ponto de vista do outro” retrata as perguntas que nortearam seus escritos: “O que é a realidade e qual a genuína natureza da condição humana”. Destaca também a máxima “Falsas realidades criam falsos seres humanos”, da qual Dick se valia para recorrer ao estatuto da liberdade na hora de diferenciar o ser humano da máquina. Ele invertia a hierarquia dos problemas, por meio de dúvidas acerca do mundo e do sujeito, para chegar “a conclusão de que a única realidade verdadeiramente humana é a atitude ética diante do outro” (p. 134 a 136).
Jurandir mostra como o realismo fantasmagórico era utilizado por Dick para mostrar o desgoverno de um sistema que perde a competência de corrigir seus próprios aleijões. O personagem Kongrosian, pianista do regime, tem transtornos psicológicos causados por sua condição de hospedeiro da propaganda oficial, repetida por insetos publicitários que o faziam escutar permanentemente que não havia problema incomodar o outro a qualquer hora do dia.
Para o autor, no mundo ideal de Dick “o diferente e o desconhecido jamais evocam, por princípio, o ódio, o desprezo ou impulso de destruição; evocam curiosidade, simpatia, desejo de convívio ou, em alguns casos, admiração” (p. 215), ao passo que o centro gravitacional da ética em Greene é a idéia de justiça judaico-cristã. Ambos, portanto, enriquecedores das discussões éticas e morais.