No atual momento em que a crença nas soluções políticas perde força na sociedade, o escritor britânico John Gray lança no Brasil um inusitado ensaio filosófico no qual aponta o anseio humano por liberdade como responsável pela opressão que domina o mundo. Em A Alma da Marionete (Record, 2018), ele propugna a volta da visão gnóstica, marcada pelo sentimento de que o mal domina tudo e por uma contundente rejeição à ideia de livre-arbítrio.
Gray é comumente associado à direita por criticar o humanismo, o comunismo e o pensamento utópico. Acusa a humanidade de se deixar possuir pelo sonho de criar versões superiores de si mesma, como os golens das lendas medievais e as máquinas inteligentes da era moderna. Para ele, o racionalismo, os pregadores contemporâneos da evolução, os trans-humanistas e os tecnofuturistas não passam de seguidores do gnosticismo.
O questionamento central dessa obra está no que é mesmo ser humano, em tempos de orações algorítmicas e conflitos de diferentes virtudes causados por divergências sobre como se deve viver. “Ser torturado ou perseguido é ruim, em qualquer que seja a cultura a que se pertença; ser objeto de atenção e gentileza é bom. Mas esses valores estão em conflito uns com os outros” (p.109), realça Gray.
Ele apela ao olhar do escritor alemão Heinrich von Kleist (1777 – 1811), que via na graça natural dos fantoches um tipo de liberdade que nunca seria conquistada pelos seres humanos. Nesse pensamento, o boneco de mamulengo suporta a condição de ser manipulado, sem direito à vontade própria, por não saber que não é livre. Diferentemente dos humanos, os títeres não sofrem com afetações, por não existirem como condenados à maldição do pensamento autorreflexivo.
Para reforçar a suposição de que a autoconsciência é um obstáculo à liberdade, John Gray cita vários outros autores que, como Kleist, viam a liberdade não apenas como uma relação entre as pessoas, mas como um estado de espírito presente na afirmação dos estoicos de que um escravo pode ser mais livre do que o senhor; na fixação dos taoistas por um tipo de sábio capaz de reagir aos acontecimentos sem ponderar alternativas; na crença dos monoteístas de alcançar a liberdade pela obediência a Deus; e em outras correntes filosóficas e teológicas que procuram fugir do que ele chama de maldição da escolha.
A passagem em que ele lança mão do Tratado dos Manequins, do escritor e pintor judeu-polonês Bruno Schulz (1892 – 1942) é cheia de imagens fortes salientadoras da seriedade trágica da matéria e sua pulsão por infinitas possibilidades de uso, sem sequer saber por que precisa ser o que é. “No mito que inspira os escritos de Schulz, a individualidade é um tipo de exibição teatral na qual a matéria assume um papel temporário – um ser humano, uma barata – e vai em frente” (p.23).
Gray trabalha também com a visão do poeta italiano Giacomo Leopardi (1798 – 1837), que atribuía as desgraças do mundo ao enfraquecimento da ilusão diante da racionalidade. Acreditava ele que tudo é matéria, inclusive a alma, e que os humanos relutam em abrir mão da distinção entre matéria e mente, por serem incapazes de imaginar a matéria pensando (p.27 e 28). Reflexões como essas fazem do livro A Alma da Marionete um vórtice de impulsos conflitantes e carentes de atenção.