O Mali e a alma do deserto
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno3, pág.2
Quintas-feiras, 24 e 31 de Janeiro de 2013 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Parte I, 24 de janeiro de 2013
Faz pouco menos de uma década que passei a dar atenção especial ao Mali, país localizado ao sul do deserto do Saara, no noroeste africano, sem saída para o mar, mas contemplado pelas divinas águas dos rios Níger e Senegal. No sentido horário, o Mali tem fronteiras com Mauritânia, Argélia, Níger, Burkina Faso (antigo Alto Volta), Costa do Marfim, Guiné e Senegal. É um país fascinante, de gente que encontrou a beleza do humano na arte, na cultura oral e na imensidão do deserto.
A minha admiração por esse país começou quando comprei o livro “Sundiata – o leão do Mali” (Editora Schwarcz, São Paulo, 2004) para ler com os meus filhos e eles, assim como eu, imediatamente colocamos essa lenda africana, contada em quadrinhos pelo genial Will Eisner (1917 – 2005), entre as nossas preferidas. Lemos e relemos tantas vezes essa história e isso fez com que passássemos a notar mais as coisas do Mali. E esse país tornou-se um lugar com importância afetiva na nossa memória.
Na abertura do livro, Eisner conta que no início do século XIII as pessoas que viviam às margens do rio Senegal eram subjugadas por Sumanguru, o poderoso rei do Sasso. Explica que ao expandir suas conquistas esse soberano, com força militar e de feitiçaria, derrotou e passou a dominar um povo mercador de sal e de ouro que havia fundado, às margens do rio Níger, uma nação chamada Mali. Nesse misto de história e de lenda, um pequeno príncipe coxo foi poupado da morte por não representar uma ameaça ao poder que se estabelecia. Essa criança era o Sundiata Keïta, que viria a ser um herói nacional.
Depois de estar com os sentidos aguçados para a existência do Mali, comecei a descobrir que o compositor e cantor afro-pop Salif Keïta nasceu lá. Daí, escutando o blues violado de Ali Farka Touré (1939 – 2006), li na capa do CD que o sujeito era malinês. E veio a Oumou Sangaré, com sua pegada contemporânea e apelo ancestral, a Rokia Traore, em refinados arranjos vocais, e, mais recentemente, numa descoberta do Lucas (13) e do Artur (11), a dupla Amadou e Mariam. Ano após ano fomos dando de escutar acidentalmente cantadores dessa terra de contadores (griôs) e suas músicas ao passo e compasso das caravanas de camelos em tempestade de areia pelas dunas do Saara.
Abro certa vez uma revista na sala de espera de um consultório médico e uma reportagem cheia de fotos impactantes mostra que, desde 2001, acontece anualmente, no mês de janeiro, um evento musical no Mali, o Festival do Deserto, inspirado nas festividades dos tuaregues, pastores e comerciantes saarianos que, depois de temporadas nômades pelos diversos países que habitam, tradicionalmente se encontram num oásis do norte do Mali, para celebrações de dança, poesia e música, para beberem uns nas fontes de experiência dos outros, saciando a sede das trocas e munindo-se de informações para tomadas de decisões. Pouco tempo depois compramos o CD duplo “Desert Blues” (Rough Guides, Hong Kong, 2010), com três horas de música em 23 faixas contendo parte da narrativa sonora do festival.
O Festival do Deserto é formado especialmente por artistas norte-africanos e de países europeus que colonizaram o continente, mas é um evento aberto também à música do resto do mundo. Mesmo com endereço definido apenas por coordenadas de latitude e longitude, com temperatura diurna de 40 graus e noturna abaixo de zero, com palco em plenas dunas do Saara, sem estrutura formal de acomodações e acesso em carro tracionado ou no lombo de camelo, o evento ainda consegue juntar até dez mil pessoas para desfrutar das apresentações da música atemporal do deserto em diálogo com guitarras e programações eletrônicas.
Com o passar do tempo, fomos sabendo cada vez mais e por diversas fontes sobre as expressões artesanais e artísticas do Mali, nas joias de Timbuktu, nas cerâmicas de Segov, nas máscaras de Dogon e nos tecidos coloridos que dão o tom do país, no seu esplendor estético e na sua força simbólica. Assim como a música, tudo isso nos faz crer na grandeza da alma cultural malinesa. Na condição de grande produtor de algodão, o Mali foi além da economia, tecendo significados e valores em panos, por meio do tingimento em tintura vegetal e de desenhos em argila rica nas propriedades do óxido de ferro.
Das imagens emblemáticas do Mali, talvez a mais conhecida seja a grande mesquita de Djenné. Diz a história que esse templo, originalmente construído entre os séculos XIII e XIV, foi totalmente refeito no ano de 1907, quando o Mali já estava sob domínio francês. Essa fantástica obra de arquitetura, feita de tijolo de adobe com revestimento de barro e amarração de tronco de palmeira, representa a forte presença do islamismo naquele país. É um templo com as paredes da mesma cor do chão, situado em uma região de clima quente e chuvoso, para onde sistematicamente deslocam-se levas e mais levas de peregrinos que, em mutirão, refazem o seu reboco em forma de oração.
Observando esses sinais exteriores de arte, nomadismo e do valor das coisas móveis que parecem constituir a base da cultura do Mali, deu vontade de ir passar umas férias por lá. No ano passado (2012), chegamos a traçar algumas rotas, via Senegal, para conhecer o Mali e ver o Festival do Deserto, mas por motivo de segurança e de vulnerabilidade logística, acabamos desistindo. O noticiário dizia o tempo todo que estava havendo muitos sequestros de turistas e que a situação política do país era bastante delicada em decorrência dos surtos de violência ocorridos no país.
O pior é que, calejados com tantas informações desencontradas, a exemplo das fantasias e verdades relativas ao Iraque, ao Afeganistão e às mobilizações da Primavera Árabe, já não sabemos medir o grau de implicações dos fatos, em situações como essa do Mali, que envolve, de um lado, os interesses de grandes corporações transnacionais de petróleo, gás e urânio, e, do outro, o que seriam ações agressivas de revoltosos ou de extremistas ligados a redes de terroristas. O que tende ao certo é que o povo malinês está novamente condenado à violência atroz, sem ter um Estado ou um clã capaz de assegurar o mínimo de estabilidade política e social.
A possibilidade de desmembramento é real. Pode acontecer no Mali o que aconteceu no Sudão, com a criação do Sudão do Sul (2011) ou na Somália, com a separação da Somalilândia (1991), ambas envolvendo a interferência de exploradores de petróleo. Os insurgentes que querem criar o território de Azawad, no norte do Mali, são identificados étnico e linguisticamente como norte-africanos, enquanto são classificados de subsaarianos os grupos que mantêm o controle da capital Bamako. O Mali não tem riquezas naturais no jogo das cobiças atuais, mas é vizinho do Níger, onde está uma grande reserva de urânio, que fornece um terço do consumo das usinas nucleares francesas, responsáveis pela maior parte da eletricidade do país, e tem fronteira com a Argélia, cuja produção de gás natural atende a um quarto do consumo da Europa.
Nos últimos quatro anos, os EUA treinaram o exército malinês para combater os chamados “terroristas islâmicos” no norte do Mali. A iniciativa acabou em golpe militar que depôs o presidente eleito Amadou Toumani Touré (2012). Essa quartelada exacerbou os ânimos da rebelião separatista, acionando levantes comandados pelos tuaregues, que tomaram as cidades de Kidal, Gao e Timbuktu, as principais do norte do país. O poder militar dos separatistas islâmicos malineses foi reforçado com o retorno de guerrilheiros anteriormente lotados nas forças armadas de Muammar Gaddafi (1942 – 2011), na Líbia. E as milícias que tomaram o norte do país querem conquistar a capital Bamako.
Parte II, 31 de janeiro de 2013
Os levantes, ataques e bombardeios ocorridos no Mali fazem parte de disputas de poder que são internas e externas. O presidente interino, Dioncounda Troaré, que pediu ajuda internacional nos conflitos, não se entende com Amadou Sanogo, comandante da junta militar golpista, que está imobilizado pelo exército francês. A França, por sua vez, tenta afirmação política e militar na conjuntura internacional ao procurar comandar a operação, mas os Estados Unidos, também em crise de referência, não acham uma boa ideia. Ambos, assim como as demais potências europeias, sentem suas lideranças na região ameaçadas pela China, que vem avançando no país, dentro de uma paciente estratégia de ocupação da África.
A China é hoje o maior parceiro comercial do continente africano, ao qual vem expandindo investimentos na recuperação e montagem de infraestrutura de ferrovias, estradas, pontes, aeroportos, casas, hospitais, escolas, fábricas, sistemas de fornecimento de água e formação técnica agrícola e industrial. Transfere tecnologia e experiência de gestão, vende produtos, presta serviços, exporta gente e abre seu mercado aos produtos africanos, conquistando confiança e recebendo petróleo e diamantes, dentre outras contrapartidas. A paisagem pintada pelos chineses não é, portanto, apreciada por Europa e EUA, ainda em situação de abalo provocado pelos efeitos da desglobalização.
A última vez que EUA e França disputaram publicamente a coordenação de tropas na África foi em 2008, quando da insurreição ocorrida no Chade, país do centro-norte africano, onde há grandes reservas petrolíferas e um lago gigantesco de preciosa água doce. A França, do então presidente François Sarkozy (2007 – 2012), tentou liderar uma força internacional de países da União Europeia, a Eufor, mas fracassou. A despeito de razões geopolíticas e econômicas, tanto Sarkozy sabia quanto Hollande sabe que “guerra santa” e “guerra contra o terrorismo” são sempre um bom remédio para baixar a temperatura de pressão popular.
Nem todos os que falam francês são franceses, pensam ou sentem em francês. Somente no Mali, além da língua oficial francesa, grupos falam dogon, gozo, hassania, peul, songhai e tamachek. Na hora de uma guerra, sabe-se lá o que se passa por dentro da cabeça de cada um, inclusive nos seus campos de vínculos com a vizinhança. Nunca é demais lembrar que o mapa da África foi desenhado de fora para dentro e que o território da alma do deserto não se limita a essas fronteiras. A linguagem comum dos povos da região do Mali parece ser a arte e, entre as artes, a música ocupa lugar de destaque.
Os artistas do Mali têm demonstrado que não querem a desagregação. Eles se movimentam e cantam com profunda vitalidade em defesa da união no país. O Mali é um lugar encantador e arriscado, onde coexistem intensamente beleza, riqueza, devastação e pobreza. O regueiro Tiken Jah (Costa do Marfim) gravou a música An ka Wili (Vamos subir) convocando a população a se unir para não deixar que a guerrilha divida o Mali: “O país vai deslizar das nossas mãos (…) Cadê os descendentes do Sundiata?”. O MC Soumy saiu com o rap Sini kelle ye (Amanhã é na luta) instigando jovens a se juntarem ao exército e às tropas francesas para lutar.
Diante da brutalidade estabelecida na guerra sangrenta pelo poder político e econômico, a arte incita as pessoas a escutarem a voz do coração. Foi aí que um grupo de mais de quarenta artistas da região vestiu todas as cores dos seus tecidos da terra e lançou o canto de paz Mali-ko, em vídeo espalhado para o mundo pela internet desde o dia 17 passado. Os sentimentos de cantoras, cantores e músicos sobre a situação têm valor significativo para uma gente que vive a música como parte da sua espiritualidade.
Entoando a tradição do blues do deserto, a cantora Kaïra Arby convoca uma tomada de mãos pela paz. Fatoumata Diawara (Costa do Marfim) pergunta com sua sensualidade o que está acontecendo para pessoas do mesmo sangue se matarem. E lembra que no dia em que os povos africanos se unirem o continente será mais forte. Em marcação de hip hop, Amkoullel entra no diálogo reforçando o convite para que todos se deem as mãos e juntos sejam mais fortes.
O guitarrista e cantor Baba Salah saca a história no tempo de Sundiata Keïta quando o Mali “era o sol que iluminava os quatro cantos do mundo”. E o cantor Soumaila Kanouté pede a palavra para dizer que “o Mali é indivisível”. As cantoras M’baou Tounkara, Oumou Sangaré e Fati Kouyaté cantam pela preservação dos valores, contra o risco de jogar fora a história do país e para dizer que a guerra não respeita ninguém. A dupla Amadou e Mariam louva a força da união, o cantor Mylmo apega-se aos princípios legados pelos heróis do país, citando novamente Sundiata Keïta, e a bela Nahawa Doumbia encerra o canto evocando paz na África e paz no mundo!
Ao ver, ouvir e compartilhar o videoclipe de Mali-ko na internet, voltei a ler com os meus filhos o surrado livrinho “Sundiata – o leão do Mali”, de Will Eisner, e tirei algumas horas para me deleitar com a coleção História Geral da África, volumes IV (org. Djibril Tamsir Niane) e VII (org. Albert Adu Boahen), Unesco/Cortez Editora, São Paulo, 2011, onde encontrei muito da incrível história do Mali, na condição de império da África Ocidental.
Estavam lá os dispersos grupos de comerciantes de ouro e de sal, as aldeias do rio Níger e o início das rotas transaarianas no século IX. A agricultura, a criação de animais, a metalurgia, as caravanas de mercadores de óleo de dendê, de cobre, noz de cola, marfim, algodão e o esplendor cultural e econômico de Djenné no século XV. Que fantástica mistura de lenda com história! A hegemonia do Sasso, entre os anos de 1180 e 1230, suas guerras contra os muçulmanos e o domínio da região pelo rei-feiticeiro Sumanguru Kante, com seu corpo invulnerável ao ferro, mas que tinha como ponto fraco não poder ser ferido por esporão de galo branco.
E o Sundiata, hein? O Sundiata era um garoto quando seu povo foi destroçado pelo exército de Sumanguru. Tinha paralisia nas pernas e, por isso, foi tratado com desdém. Anos depois reuniu grupos subjugados da região e comandou uma série de façanhas militares, derrotando Sumanguru e criando o Mali, em 1235. No poder, Sundiata definiu alguns princípios constitucionais para seu país e para os povos federados, com a codificação de alguns costumes e interditos que ainda hoje inspiram as relações naquela região. Teve a sabedoria de valorizar o violão tetracórdio (balafo ou dan) utilizado pelos contadores de histórias, que havia sido popularizado por Sumanguru. No seu governo, Sundiata Keïta adotou o canto conhecido por Boloba (a grande música), composto pelos griôs para ouvir e para dançar e criou as condições para o florescimento da matemática, da literatura e da arte.
O império do Mali só entrou em declínio depois do século XV com as grandes navegações, época em que dirigiu a atenção para o litoral, em negociações com portugueses que, dentre outras coisas, trocavam um cavalo por quinze escravos inimigos. Enfraqueceu, entrou em processo de divisão e, na segunda metade do século XIX, caiu na cota da França, quando as potências europeias ratearam o continente africano para todo tipo de exploração. Foram muitos os movimentos de resistência, mas o Mali, assim como quase duas dezenas de colônias francesas na África, só conquistou a independência em 1960. Hoje, com mais de um milhão de quilômetros quadrados e cerca de quinze milhões de habitantes, vive o paradoxo de, por um lado, ser acusado de entreposto de pirataria e, por outro, de ser uma das fontes de tendência de moda e da música internacional. Paz para o Mali !!!