O mercado de conteúdos
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3
Quinta-feira, 10 de Janeiro de 2008 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Da mesma maneira que a vulgata do neoliberalismo globalizado decretou o fim da história, promoveu a destruição criativa nas organizações, divinizou o individualismo e prometeu abundância por meio do mercado livre, o fundamentalismo tecnológico, que vivemos hoje, prega fantasias de pertencimento virtual, a instantaneidade do tempo, a planificação do mundo e a produção colaborativa do conhecimento.
A aplicação da doutrina do mercenarismo transnacional, já sabemos claramente, agravou a situação de violência, apartação, degradação ambiental e abalou as relações humanas em todo o mundo. Em que a veneração às novas tecnologias nos transformará, ainda é um enigma a ser decifrado entre encantos e desencantos. A vida está mais provocante do que às vezes imaginamos e isso é uma prova da vitalidade humana de se reinventar.
Além dos paradigmas das navegações e das ferrovias, percebo o crescimento do paradigma das feiras populares no mundo dos computadores. A teia digital remete ao tempo em que a popularização do conhecimento e a produção de informações se davam sem intermediários. Tempo de experiência boa, quando a existência precisava de poesia. Durante o dia, as pessoas trabalhavam como vaqueiros e agricultores e, à noite, tocavam viola, recitavam versos ao fascínio da lua.
Das ruas e dos sambas, muitos se tornaram referências culturais, como foi o caso do Jackson do Pandeiro, na música; de Garrincha, no futebol; e de Chico Xavier, na religiosidade. No flanar pela rede mundial de computadores, percebe-se que esse espaço estaria sendo oportunizado ao blogueiro, ao repassador de corrente da sorte, ao postador do insólito e ao espalhador de boatos. A net seria a praça dos nerds, onde as vaidades mal chegam e se vão, no sentido salomônico do termo.
A promessa de criação de valor para os mais talentosos produtores de conteúdo da praça virtual está colocada e o mercado associa esse jogo de probabilidades ao sugestivo conceito de economia criativa. Virou um atrator para todos os que buscam espaço de destaque na complexidade fractal da virtualidade. Na geometria tradicional, o atrator é o lugar para onde todas as trajetórias são conduzidas; conceito que pode muito bem ser aplicado à corrida sêmica por visibilidade.
A expressão economia criativa está atrelada ao discurso dos especialistas e consultores patrocinados e influenciados pelos programas das Nações Unidas voltados para a valorização do patrimônio simbólico. Mesmo aparentando ser mais um lance de controle de insurgências em uma periferia global que se rebela, a idéia é muito boa. Sempre me incomodou, por exemplo, o fato de o Brasil ter desenvolvido o melhor futebol do mundo e isso não ter nos levado a produzir as principais marcas desse segmento desportivo. Pelo contrário, exportamos craques in natura para beneficiamento na indústria esportiva européia.
Administrar os nossos interesses diante do novo espelho oferecido pelo colonizador é um dilema nada fácil de enfrentar. Por um lado, precisamos ser flexíveis a ponto de não travar as oportunidades que se abrem; e, por outro, devemos estar atentos para, em nome dos sonhos de igualdade, não nos tornarmos inocentes úteis na guerra de competitividade da nova indústria cultural e dos rearranjos da geopolítica planetária.
O determinismo apregoado pelo capitalismo da era tecnológica pressiona os produtores de conteúdos a abrirem mão dos direitos autorais, em nome do enriquecimento cultural e científico da humanidade. Em tese essa proposta tem sentido e é de grande valor. Mas por que somente a propriedade intelectual e intuitiva deve ser socializada? A generosidade desse discurso apropriado da economia solidária não responde a essa questão porque tem como fim a concentração do poder econômico no mercado digital.
Pela legislação brasileira, após 70 anos da morte do autor, uma obra torna-se de domínio público e pode ser copiada e reproduzida à vontade, desde que vinculada ao nome de quem suou para produzi-la. É um prazo razoável para o usufruto do autor e dos seus herdeiros. O tempo da humanidade deve ser contado em séculos, em milênios, e não na pressa do tempo dos ciclos tecnológicos das corporações, que, em nome da ideologia do consumismo, produzem bilhões de toneladas de resíduos tóxicos não recicláveis a cada ano.
O portal www.dominiopublico.gov.br mantido pelo Ministério da Educação é um exemplo do tanto de informações que temos acumuladas e que podem ser compartilhadas livremente. A página do MEC reúne livros disponíveis gratuitamente para serem impressos pelo usuário da internet sem qualquer custo de direito autoral. Esse deveria ser o caminho natural para a tão sonhada biblioteca universal. A acessibilidade digital do texto não impede que os editores continuem publicando obras em boas edições para os apreciadores da literatura. É necessário que façam isso. O autor da Teoria da Relatividade, Albert Einstein (1879 – 1955), dizia que “a imaginação é mais importante que o conhecimento”.
O debate sobre o mercado de conteúdos está fora da agenda atual porque o discurso da pós-modernidade tem sido moldado pelas eficientes ações de advocacy da cultura digital. Sem parâmetros para se posicionar, as pessoas cobram atitudes de si mesmas e muitas acabam devotas do fundamentalismo tecnológico, como conseqüência dos sofismas do consumo delirante. Há também as que se tornam seguidoras irrefletidas por necessidade de demonstrar “protagonismo”, como sugerem as cartilhas dos órgãos de financiamento de mais do mesmo, embora diferente.
Vivemos uma circunstância desafiadora nesse jogo entre a vontade de criar condições de difusão rápida e plena do conhecimento e a pressão dos cartéis e das hegemonias com seus discursos fundados em um democratismo destituído de barreiras éticas. A nova era de transformações no perfil dos mercados mundiais que se apresenta chega com a mesma e velha mentalidade do passado. No auge da globalização neoliberal, os projetos de reengenharia nas empresas mudaram o termo empregado e funcionário para colaborador. Não por coincidência, agora a expressão da moda é produção colaborativa.
Com o deslocamento da economia mundial para os países asiáticos, a previsão anunciada pelos manipuladores de dados e informações de mercado é que nos próximos cinqüenta anos a economia da China e da Índia será maior do que a dos Estados Unidos e da União Européia. O Brasil, apesar de ter conquistado uma democracia estável, de experimentar um crescimento econômico com relativa distribuição de renda e de ser um país futurista em sua espetacular experiência de miscigenação, aparece muito timidamente nessas projeções, se considerarmos a respeitabilidade que tem e a influência que pode exercer para a criação de novos referenciais civilizatórios.
Os paradoxos estão soltos e quem tem maior poder de difusão tem maior poder de convencimento. O duelo entre os mercados de produtos e serviços físicos e o mercado de produtos e serviços virtuais é a fonte de boa parte dos novos discursos libertários. A liberdade da comunicação no universo digital pode ser tão enganosa quanto à liberdade dos escravos que saíram dos canaviais para servirem de mão-de-obra barata no período da industrialização. O fortalecimento econômico da indústria cultural digital depende de conteúdos para a intensa produção do efêmero. A oferta de liberdade que eles oferecem é tentadora e precisamos configurar uma rede de novos quilombos, sem esquecer jamais que o tempo universal da humanidade deve estar sempre acima da sedução das corporações no mercado de conteúdos.