O mito ecológico do Saci Pererê
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3
Quintas-feiras, 25 de Outubro e 01 de Novembro de 2007 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Parte I, publicada em 25 de Outubro de 2007
Os estudantes da disciplina Produção Publicitária em Rádio da Unifor produziram mais de trinta spots sobre o Dia do Saci. Ao receberem a pauta muitos reagiram negativamente por entenderem que o Saci é coisa do passado, do folclore, que não tem ligação direta com a atualidade do mundo real. Houve também os que acharam inicialmente que a escolha do dia 31 de outubro, mesmo dia das festas de Halloween, não passa de uma provocação quixotesca e desnecessária.
Depois de pesquisar, discutir, conhecer melhor as histórias e os alcances do mito do Saci Pererê, produziram um material apaixonado, diversificado e criativo. Entraram no redemoinho aos pulos e assobios. Basta dizer que uma das peças sonoras, a da dupla Renata Barbosa e Adrya Soares, começa com uma encenação de deslavado elogio a uma fantasia de Halloween e termina com uma síntese que é a chave da questão:
– Quanto custa? – é a pergunta com relação à fantasia.
– A sua cultura. – é a resposta.
A festa do Dia do Saci é um contraponto à expansão do consumismo no Brasil e uma oportunidade de aproximação com o nosso mais autêntico imaginário. A escritora Ruth Guimarães argumenta que duendes como o saci, “que não têm o que fazer e que ficam por aí fazendo arte, servem para deixar a vida um encantatório. A vida tem que ser encantada (…) O Saci é o mito do encanto”, diz no documentário “Somos todos Sacys”, de Rudá Andrade e Sylvio Amaral, que será exibido na abertura do debate “Saci X Halloween – a Guerra dos Mitos”, no próximo dia 31, às 19 horas no auditório do Centro Dragão do Mar. Nesse evento lançarei o meu novo livro/cd “A Festa do Saci” (Cortez Editora) e serão apresentados doze das três dezenas de spots preparados pelos estudantes da Unifor.
A proposta de realização do Dia do Saci no Ceará é fruto da Constituinte Cultural, patrocinada pela Secult no primeiro semestre deste ano. O secretário Auto Filho tomou para o Ceará a primazia de realizar a festa do Dia do Saci no 31 de outubro, independentemente do dia da semana em que a data cair. Caiu numa quarta feira, dia de aula e de trabalho, portanto dia não muito propício para se começar a fazer frente aos avanços no Brasil dessa festa do consumismo norte-americano, que é o Halloween. Mas desafio é desafio e cearense não gosta de moleza.
Durante todo o dia 31 haverá uma intensa programação na Biblioteca Pública para crianças, com brincadeiras, pinturas de rosto, apresentação do coral Um Canto em Cada Canto, distribuição de gorros vermelhos e de mudas de plantas. No início da noite acontecerá o debate no auditório do Dragão do Mar e em seguida a Farra na Casa Alheia do Amici’s, para adolescentes e adultos curtirem a primeira folia de saci da noite fortalezense. O Amici’s já chegou a realizar alguns eventos de Halloween, mas a partir deste ano está mudando para a festa do saci, em uma animação que começará às 21 horas e só terminará quando não tiver mais ninguém conseguindo ficar em pé numa perna só.
Em Fortaleza, escolas mais antenadas e comprometidas com os nossos valores culturais e com o educar para a vida, como o Canarinho e a Escola Vila, começam este ano a fazer suas festas de saci. A movimentação ganha expressão também no interior. Em Crateús as secretarias de Cultura e de Educação se uniram para realizar o evento também no dia 31, com extensa programação cultural, que vai da contação de histórias de trancoso a realização de caravanas de crianças e adultos pelos bairros, rumo a Praça dos Pirulitos. De forma bem-humorada, o Saci foi escolhido como componente central do projeto nessa cidade por ter o “jeito brincalhão e bonequeiro” de ser do cearense.
Está em tramitação na Câmara dos Vereadores de Fortaleza o Projeto de Lei nº 0189/2007, do vereador Guilherme Sampaio, que deverá ser votado no próximo dia 31, instituindo o Dia do Saci no Calendário Oficial do Município. Cidades como São Paulo, Vitória, São José do Rio Preto e São Luiz do Paraitinga já têm suas leis do Dia do Saci. A tendência é de ampliação também pelos estados, como é o caso de São Paulo, onde a data de 31 de outubro já é oficialmente dedicada ao Pererê, inclusive com a aprovação dos projetos de lei que criam o Dia Nacional do Saci e que estão perdidos no cipoal de disparates que desonra o Congresso Nacional.
Há cinco anos, desde que foi fundada no Vale do Paraíba, a Sociedade dos Observadores de Saci, Sosaci, vem realizando eventos em outubro para celebrar o mais popular dos mitos brasileiros. Aproveita o final de semana mais próximo da data de 31 de outubro para fazer a festa. Este ano, além de atividades nos dias 3 e 4 de novembro em São Luiz do Paraitinga, com passeios “saciclísticos”, trilhas enigmáticas, música, dança, teatro e brincadeiras na praça, a Sosaci promoverá um evento, no sábado dia 27 pela manhã, no Museu Afro, no Parque do Ibirapuera, com exposições, apresentações musicais e brincadeiras. Na ocasião será lançada a edição atualizada, pela Editora Globo, do livro O Saci, de Monteiro Lobato.
Na tarde do sábado, dia 27, lançarei em São Paulo o livro/cd A Festa do Saci, na Livraria Cortez, com apresentação especial da cantora Giana Viscardi (www.gianaviscardi) e do Trio Sopramadeira. Já fiz o lançamento desse trabalho em Belo Horizonte e Brasília. Tenho percebido que as pessoas se encantam quando despertam para a grandeza do mito do Saci, especialmente pelas características ambientais que ele congrega. A festa do Saci é quintal, pátio, praça e parque; o Halloween é shopping center. Um tem cheiro diferente em cada lugar, enquanto o outro é tudo igual. Os quintais das cidades são as suas áreas verdes.
Ao se depararem com o Saci percebo que as pessoas revelam uma grande vontade de valorizar seus quintais, de cantar “Brincar no quintal / pra renascer a criança / moleque levado / Saci Pererê / que quer andar solto no mato / mas vive trancado / dentro de você”, da Bia Bedran. No cd que acompanha o livro A Festa do Saci organizamos treze músicas de ambiências urbanas e rurais, como forma de mostrar que o redemoinho do Saci passa pelos campos e pelas cidades. A festa começa com a convocação do Saci: “Pode chegar me abraçar / o vento é bom de assobiar / sou Boitatá sou Caipora / me apavora eu vou gostar”.
O Saci é um habitante das matas, um morador das áreas verdes, um fauno brasileiro. Em “Aves do Brasil”, o naturalista suíço Emílio Goeldi (1859 – 1917), que foi um grande estudioso da fauna brasileira e dá nome ao Museu Paraense do Parque Zoobotânico de Belém, refere-se ao Saci como uma ave mitológica formada por fragmentos modificados de antigas lendas indígenas. “Çaa cy” quer dizer “olho que assusta” e Perereg” significa saltitante em tupi-guarani. Os povos nativos do Brasil pré-colonial já tinham seus mitos, aproveitaram o próprio medo para dizer aos colonizadores que entrar na floresta era perigoso, que lá dentro tinha um diabinho que dava nó na crina e no rabo dos cavalos. (continua na próxima quinta-feira, dia 01/11/2007).
Parte II, publicada em 01 de Novembro de 2007
A mentalidade de modernização, assumida especialmente pelos grandes centros urbanos brasileiros, a partir da segunda metade do século passado, acabou rejeitando deliberadamente muito do imaginário que foi desenvolvido no processo de formação do Brasil. Com a negação dos elementos da cultura florescida no mundo rural, as cidades brasileiras cresceram faltando significativos pedaços de sua alma, dentre os quais se destacam aqueles formados de conteúdos lendários.
O Saci é um mito ecológico indispensável à necessária reinvenção do imaginário brasileiro, tão pressionado pelo modelo dominante do consumismo. Os projetos de urbanização, de revitalização das praças, de resgate das áreas verdes isoladas pela especulação imobiliária nos centros urbanos, de cuidados com as árvores em situação de rua, de conservação e preservação dos diversos biomas brasileiros e de educação ambiental precisam contar com o poder dos nossos mitos e com a força participativa da infância.
A educação ambiental não depende apenas de estudos e análises racionais, nem da criação de órgãos administrativos ambientais, de política ambiental, de programas de reciclagem, de unidades de conservação e campanhas de conscientização. A participação dos seres fantásticos das matas é fundamental nesse processo, considerando que o fato do mito eclode na dimensão do imaginário, mas se realiza no cotidiano das pessoas. A verdadeira consciência nasce quando aceitamos a companhia das coisas que não existem, no despertar da nossa vontade de enxergar mais do que os nossos olhos vêem.
A potencialização da força do imaginário de brasilidade é uma questão de política pública e de obrigação da sociedade. Ações simples e baratas como, por exemplo, a disponibilização de telas com imagens dos nossos mitos para camisetas. A maior dificuldade de quem estampa camisetas é conseguir telas com motivos brasileiros. Enquanto isso, os temas e personagens estrangeiros são facilitados e oferecidos gratuitamente para quem quiser reproduzi-los.
Emboabas, tropeiros, boiadeiros, escravos transferidos e fugidos espalharam a figura do Saci pelo Brasil, tornando-o um mito integrador e de abrangência nacional. Ele tem a identidade do múltiplo. Carrega em sua essência variantes sedimentadas conforme o devaneio dos seus narradores. O Brasil conta com um exército de mitos ecológicos. O Saci Pererê é o mais destacado deles por ser uma síntese do imaginário nativo, negro e branco e por reunir muitos dos atributos ambientais manifestados nos mitos regionais.
Em sua versão mais antiga, o Saci tinha barba de bode, olhos vermelhos e no lugar do gorro alguns apareciam com uma cuia na cabeça pintada de urucum. Na grande enquete que o escritor Monteiro Lobato (1882 – 1948) fez em 1917, para entender e ressignificar o ícone do Saci, as várias histórias contadas pelos leitores de diversas regiões brasileiras testemunham a força desse mito tupiniquim na textura psíquica brasileira. Lobato chamou o Saci à cidade para lembrar e provar que “esta terra tem uma alma”. Hoje, 90 anos depois, a sustentabilidade é uma questão urgente e a revitalização do Saci cada vez mais necessária.
O mundo da oralidade, da cultura popular, não obedece ao rigor do método científico, por isso também não está subordinado a seus limites. O trânsito da compreensão, os atributos misturados, compartilhados, faz com que uns mitos emprestem características a outros e o importante nesse sincretismo mítico é que cada ser fantástico seja aceito como um valor cultural respeitável no território onde se relaciona. A figura do Saci Pererê é identificada como emblema capaz de se estender com desenvoltura do simples ao complexo, na organização do nosso imaginário sedimentar.
Como o Caipora, o Saci gosta de assustar caçadores. Da mesma forma que a Comadre Florzinha, ele protege os animais selvagens, embora mexa bastante com os animais domésticos a fim de azucrinar a vida de quem se muda para o campo, ameaçando a natureza. Pelo olho que assusta e pela proteção das matas, apresenta semelhanças com Boitatá. Na selva amazônica pode ser confundido com o Mapinguari, ao assombrar caçadores e cortadores de madeira. Nos depoimentos colhidos por Monteiro Lobato, o Saci chega a aparecer com características do Boto: “Há o saci caseiro, tentador das moças, chamado taterê (…) entra na água sem se molhar”.
Na voz de um caçador profissional o Saci assume os atributos de guardião das florestas atribuídos ao Curupira: “Vi [o Saci] num secular toco de peroba, que as queimas periódicas não tinham conseguido destruir, um molecote preto, de beiços vermelhos como açafrão, de cócoras, a rir perdidamente”. Há relatos em que o saci aparece com o calcanhar para frente de modo que suas pegadas indiquem direção contrária ao seu caminhar. São comuns também os causos de saci aumentando os ventos para prejudicar a ação das queimadas, estendendo o fogo aos cafezais e canaviais.
O mito ecológico do Saci está presente em muitos causos do livro “O Sacy Pererê – Resultado de um Inquérito” (1918). A fala de um morador da cidade de São Paulo sobre a mata onde hoje são os chamados jardins, conta que na boca da noite o Saci saia procurando os meninos que caçavam passarinho e destruíam seus ninhos. O relato testemunha que quando esses meninos viam o Saci corriam deixando para trás gaiolas e alçapões. “Em Minas há um [Saci] muito reinador que atenta os garimpeiros”, cientifica um depoente. Quando se trata dos espantalhos da noite no Brasil, “o Sacy é o coração que alimenta três artérias: o lobisomem, a mula-sem-cabeça e a bruxa”, conclui um outro.
O relato de um cearense explica que no Ceará alguns atributos do saci, tais como as travessuras nos galinheiros e nos currais, coincidem com as do caipora. Ele diz que os dois são assustadores e esclarece que nos lugares de predominância indígena o caipora usa uma carapuça encarnada (que era como se chamava a cor vermelha no Ceará em tempos passados) feita de urupemba, um tipo de peneira vegetal utilizada na cozinha, e anda montado num porco do mato conhecido como caititu.
A história de um casal cego que pedia esmolas nas ruas de Caçapava, São Paulo, descreve bem o vínculo do Saci com a preservação ambiental. Marido e mulher haviam conseguido fazer uma derrubada de árvores, apesar da ação do Saci que as regeneravam. Descobriram que aquele pedaço de terra era enfeitiçado pela presença do Saci, para o qual a sombra das árvores eram necessárias. Resumindo, eles conseguiram se livrar da cabacinha onde o Saci guardava seu feitiço e desmataram tudo. Tempos depois, numa cena digna de Edgard Allan Poe (1809 – 1849), não suportando a curiosidade, os dois resolveram desenterrar a cabacinha para ver o que tinha dentro. Ao quebrá-la, foram atacados por marimbondo venenosos que os picaram até que ficassem cegos.
No “inquérito” lobatiano um leitor conclui que “as proezas do sacy, a sua malignidade e esperteza, o seu riso e a sua diabrura, são actos inesperados da natureza brasileira, ironia da sua grandeza”. Diante da exaustão dos recursos naturais do planeta e do esgotamento das relações entre as pessoas, o Saci aparece como o mito dos ventos contrários, o apaixonado pela inexistente flor da samambaia e um anti-herói dos tempos atuais. O Saci está solto e felizmente sabemos do que ele é capaz.