O que há de mais atraente no destino é o quanto se pode agir para influir na mudança do seu curso. As mazelas do mundo atual, tais como pandemias virais (Aids, gripe suína e Covid-19), aquecimento do planeta, migrações forçadas por miséria e crise de significados, são desafiadoras e pedem transformações imediatas nos comportamentos da humanidade com relação a si mesma e à natureza.
Diante dos efeitos do hipercapitalismo de consumo e seus fluxos insistentes de mensagens-produtos, modeladores de sensibilidades, uniformizadores de pensamentos e destruidores das práticas democráticas, é imprescindível a dinamização cultural como meio de reinvenção do mundo. O cenário para esse espetáculo é o que restou da colonização mercadológica do jeito de viver e da predominância do ciberespaço como território de relações sociais.
No livro “A cultura-mundo – resposta a uma sociedade desorientada” (Cia das Letras, 2011), os ensaístas franceses Gilles Lipovetsky e Jean Serroy realçam o quanto a hipermodernidade mudou a relevância da cultura, que deixou de ser uma superestrutura de signos capaz de revelar e explicar o mundo, para confundir-se com o tecnocapitalismo planetário, com as indústrias culturais, o consumismo total, as mídias e as redes digitais.
A migração radical da cultura, do campo da antropologia para o da economia, reduziu a autonomia transformadora da arte, levou as dimensões estéticas para os objetivos de mercado e facilitou a instalação das bases ideológicas do individualismo e do consumismo. Essa hipercultura universal já não se distingue da cultura mercantil que, segundo os autores, apoderou-se das esferas da vida social, dos modos de existência e da quase totalidade das atividades humanas.
O hipercapitalismo cultural ganhou corpo com a consolidação do entretenimento midiático, com as reivindicações particularistas e com a superabundância de informações. Uma onipresença que os autores chamam espirituosamente de “consumo bulímico”, pelo seu caráter compulsivo de deglutição e de vômito das ofertas excessivas igualmente expostas em vitrines comerciais de todos os continentes.
A desestabilização estrutural do mundo hipermoderno (hiperbolização dos princípios da modernidade) tem, para Lipovetsky e Serroy, dois pontos distintos com relação às sociedades que nos precederam: o desamparo e a desesperança atuais não eram tão grandes, nem quando a visão social era dominada por deuses (mas as pessoas não duvidavam da ordem do mundo), nem quando, na modernidade, as promessas de futuro ganharam respaldo na racionalidade humana.
Os autores mostram o paradoxo entre o excepcional salto para a frente dado pela velocidade e abundância de informações e a falta de compreensão da vida e do viver. Em um planeta impactado pelo esgotamento de recursos naturais renováveis, os conteúdos culturais tornam-se de grande importância social, econômica e política. Cabe à sociedade civil mobilizar a inteligência e a imaginação para libertar a cultura da sua anexação total pela ordem mercantil.
É em torno de potências culturais, sobretudo das reconfigurações do real e das vanguardas iconoclastas da arte e da literatura, que podem ser recriadas novas demandas, propósitos, divergências e coesões sociais para “civilizar a cultura-mundo”, como propõem Gilles Lipovetsky e Jean Serroy, fazendo da cultura globalitária uma plataforma de unidade do gênero humano em suas diferenças.