Em uma sociedade farta de produtos e serviços que procuram anteceder até a imaginação das crianças, mas onde crescem também fartamente as doenças infantis decorrentes da falta de lugar para a criança ser criança de verdade, uma obra como a animação musical Pinóquio, de Guillermo del Toro, é uma grande preciosidade.
Mais do que um filme de arte que respeita a criança e o seu direito de lutar para ter um lugar na infância, Pinóquio é uma oportunidade pedagógica diante da guerra entre os múltiplos condicionamentos dos modelos de infâncias e a cultura da infância. Um dos maiores conflitos da criança na atualidade é a pressão que ela recebe do excesso de mapeamento e de fórmulas de resolução desses conflitos.
O cineasta mexicano, que divide a direção com o diretor estadunidense Mark Gustafson – que assegurou em stop-motion a plasticidade fascinante da obra, a qual, por sua vez, tem parte da narrativa primorosamente trabalhada pelo músico francês Alexandre Desplat –, em apenas 1h e 54min, entrega com bichos humanizados e humanos animalizados uma necessidade de resposta ao que é ser criança de verdade.
Del Toro inicia o filme com uma homenagem ao autor do clássico Pinóquio, o escritor e jornalista italiano Carlo Collodi (1826 – 1890), dando seu nome ao que seria o filho biológico do carpinteiro Gepeto, morto durante um ataque aéreo na Itália fascista da década de 1930. Com isso, ele introduz também a época em que ambienta a história do boneco teimoso que conquistou a faculdade de ser criança.
Enquanto Pinóquio se esforça para entender os valores sociais e educacionais que encontra no mundo em que quer crescer amando e sendo amado, ele não abre mão de usufruir da experiência infantil tendo como ponto de partida o seu estado bruto de criança, sem ter que submeter sua credulidade a assédios de exploradores comerciais e políticos da infância.
As ameaças de retrocessos civilizatórios vigentes na contemporaneidade estão representadas por Guillermo del Toro nessa nova aplicação dada ao significado da obra de Collodi, escrito em 1881. A gênese do fascismo, vista na continuidade das lideranças messiânicas e movimentos antidemocráticos, na exaltação das armas, nos ataques à imprensa e na militarização da mente infantil, amplia a indagação sobre o que é ser criança para o que é ser humano.
O enfrentamento dessas questões passa pelas artes e pela literatura, suas hipóteses de sentido, vida e morte, sensibilidade estética e diversão da mente e do corpo como partes do fluxo de viver interconectados por todos os reinos da natureza. Somente brincando e brigando livremente com conselhos de grilos falantes, destrezas de gigantes marinhos e a suas próprias angústias de crescimento a criança pode fundir e formar proteções intuitivas e racionais.
Pinóquio é uma dessas possibilidades que a infância tem de encontrar defesa em seu estado profundo. A sociedade como um todo precisa desses espaços de sublimação. Em sua “Gramática da Fantasia”, o escritor e educador italiano Gianni Rodari (1920 – 1980) fala do quanto a Alemanha subjugada pelas guerras napoleônicas (1803 – 1805) conseguiu se fortalecer com a transcrição da sabedoria monumental das fábulas, feita pelos irmãos Jacob (1785 – 1863) e Wilhelm Grimm (1786 – 1859).
Para Rodari, a obra de Collodi ganhou a importância que tem ao longo do tempo porque atribuiu o papel de protagonista à criança como ela é, e não como os adultos gostariam que ela fosse. Isso dá a meninas e meninos o conforto de que pode até ser doloroso ser criança de verdade, mas que vale a pena. Ao fazer seu filme, Guillermo del Toro manteve esse encanto original de Pinóquio, como um SOS à infância e à humanidade.