O que acontece quando a gente vota
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3
Sábado, 16 de Setembro de 2006 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Os motivos que nos levam a votar têm componentes que vão de obrigações a paixões. Sejam quais forem esses motivos, votar é um ato que traz conseqüências para a vida real. É essencialmente transformador. A cada eleição, o eleitor volta a se encontrar nas mesmas condições de optar a que esteve exposto no pleito anterior. Encontra-se consigo mesmo diante da urna e todos os votantes somam-se na circunstância de poder manter ou trocar seus representantes no parlamento e no executivo público.
No Brasil fazemos isso de dois em dois anos. Há quem ache muito, principalmente por ser dispendioso. Particularmente acho essa periodicidade boa, pela pedagogia que ela enseja. É um preço que pagamos pelo amadurecimento do nosso espírito democrático. Votar determina não somente a manifestação de uma escolha, mas especialmente a simbologia do exercício de um legítimo e inalienável direito civil.
Na correlação das desigualdades sociais, o voto representa um ponto de equilíbrio no jogo democrático. Suas possibilidades são inumeráveis e suas probabilidades nem sempre estimáveis. Votar evoca uma idéia de avanço civilizatório. Mesmo quando encarado como uma simples convenção arbitrária, combina a noção de oportunidade com a de liberdade. No plano coletivo gera uma mistura de recursos da nossa diversidade de habilidades e entendimentos políticos, levando-nos a conviver com resultados que independem dos nossos quereres individuais.
Há umas eleições que parecem secar nossos sonhos e outras que deságuam em mudanças desejadas. São sempre incógnitas desafiadoras. De modo certo ou equivocado, o fato da decisão dos nossos votos se aplicar diretamente na realidade, mesmo que separadamente pareçamos frágeis e isolados, torna a ação de votar em um ato concreto de imensa abstração.
Por estarem hipoteticamente atreladas à regra da alternância, as eleições tornam mais brando o brutal enfrentamento pelo poder. Elas estabelecem fronteiras às hostilidades das disputas no tempo e no espaço. Criam condições para a aceitação do fracasso e da vitória, ao desorganizar os espaços temerosos da ira e da soberba incontroláveis.
Tem gente que desacredita do voto por conta das seguidas tentativas de direcionamentos e induções a que as pessoas são submetidas. Não encaro assim essa questão. Mesmo através de filtros a população consegue enxergar nuanças da realidade. Óbvio que conseguem. Têm suas próprias experiências e expectativas. Até que ponto se rendem ou compartilham com manipulações é outro problema.
O que mais me impressiona nos períodos eleitorais é o jeito como tratamos o que nos chega pelas dimensões das narrativas. Os fatos políticos ganham elasticidade literária e autonomia interpretativa. Tudo fica tão extraordinário que as distorções de dados e informações não conseguem empregar às palavras significados que elas não têm, embora abram as janelas da semântica para a recriação dos acontecimentos.
Tenho uma certa confiança na convicção comum. Vejo-a com melhores olhos do que os proselitismos dos discursos competentes. A espontaneidade reveladora diz que as eleições constituem um importante momento de construção social pela subjetividade. Existe uma parte expressiva da elite brasileira que despreza o voto porque não consegue impor suas teses à população. Também porque o voto acaba deixando todo muito meio na igualdade e isso para muita gente é um tanto insuportável. Retóricas, retóricas, práticas à parte.
Meu sentimento é que a cada eleição elevamos o país a um novo patamar de preparação democrática. Voto a voto, nós, eleitores, vamos aproximando o que está ao nosso alcance com o que esperamos de compromissos dos nossos representantes. O ritual democrático do voto não garante, contudo, a democracia. A representação é um avanço social e político cheio de limitações. Um dia ainda conquistaremos uma política que nasça na cultura e passe pela educação antes de chegar na economia.
Ninguém vota por votar. Mesmo o mais distraído, desiludido e encurralado eleitor, carrega consigo uma mensagem para pôr na urna. Pode depositar indignação, incompreensão, ignorância, consciência, racionalidade, paixão, intuição, mas há sempre um significado em seu ato. O ato de votar intensifica a democracia mesmo em sua mais imperfeita condição.
A imperfeição da democracia estreita o seu valor com a condição humana. Falsas evidências e ilusionismo transitam na vida democrática lado a lado com o sim e o não depositado na urna eletrônica.
Conscientes ou não, na medida em que podemos tomar decisões, os nossos votos acionam um misto de interesse com uma complexa realidade refratária que se superpõe à nossa realidade concreta e simples.
Todos almejam mudanças ou permanências programadas. Seria supostamente mais seguro e mais confortável. Entretanto, o voto rompe com essa projeção linear dos desejos, colocando os rumos da vida política numa perspectiva quase aleatória, que talvez seja o grande valor da democracia.
As eleições são educativas porque criam dúvidas. Por mais modestas que sejam as dúvidas, elas são modificadoras das nossas atitudes. Costumo votar como quem dar um voto de confiança na dúvida levada pelo meu gameta eleitoral. Ser fecundo no frenesi das urnas é uma aventura de inspiração irracional de si mesmo. Uma busca de saber até onde somos mesmo eleitores. Esta é a finalidade do voto na imperfeição democrática.
Quanto mais respeito essa característica do oculto na democracia, mais me convenço do quanto a política deveria nascer da cultura e não o contrário como herdamos da nossa história. A curva evolutiva da democracia é exatamente esse limitante do poder do eleitor. Uma sociedade só passa a perceber essa barreira quando vota muitas vezes, quando participa de muitas eleições. Sem essa experimentação não há como produzir uma cultura política para o cotidiano, para o local e o cosmopolita a um só tempo.
Quem acredita na capacidade humana de preservar e construir relações deve observar a democracia como algo mais amplo do que a política e antes dela. É um recurso que trafega pela subjetividade e não apenas um ritual da cena política no palco social. É isso o que acontece quando a gente vota.