O que é mesmo “saudade pura”?
Artigo publicado no Jornal O POVO, Caderno Vida & Arte, pág.4
Quarta-feira, 04 de fevereiro de 2015 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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FAC-SÍMILE
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No show “Diálogo” de vozes e violões, que Chico César e Paulinho Moska fizeram no fim de semana passado, no teatro da Caixa Cultural, em Fortaleza, eles contaram a história de como surgiu a parceria da música “Saudade”, gravada por Maria Bethânia no CD Tua (Biscoito Fino, RJ, 2009).

Moska contou que em uma das idas de Chico César à sua casa, no Rio de Janeiro, o artista de Catolé do Rocha chegou com um jeito diferente, um tanto irresoluto, em estado de abstração. Tinha dado de cara com uma lua espelhada nas águas da lagoa Rodrigo de Freitas e estava acometido por um tipo incomum de saudade.

– Saudade de quê? – perguntou Moska.

– Só saudade mesmo, uma saudade pura – respondeu Chico.

E essa história de “saudade pura” foi o suficiente para os dois sentarem e fazerem uma parceria. Foi o suficiente também para gerar uma interrogação silenciosa na plateia: “Saudade pura”? A letra da canção fala de “Saudade, a luz que sobra da pessoa” e de “Saudade, o som do tempo que ressoa”.

Muitas associações passaram pela minha cabeça naquele momento. Lembrei-me dos versos de “Saudade boa”, da composição de Dilson Pinheiro e Adauto Oliveira: “Eu quero dez lembranças de uma lagoa / Pra quando a vida me levar na correnteza / Eu lembrar que já fui presa / De uma saudade boa”. Depois, alguma coisa de “Qui nem jiló”, de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira: “Se a gente lembra só por lembrar…”.

Mas a “saudade pura” de Chico César era outra coisa. Saí do teatro matutando. Só conhecia essa expressão na marca de uma cachaça paranaense-carioca. Foi, então, que me lembrei do livro “La sociedade sin relato” (Katz, Buenos Aires, 2010), do antropólogo argentino Néstor García Canclini, e sua estética da iminência, no que ela escapa da melancolia causada pelo sentimento sempre pendente de algo que se perdeu: “Se a iminência tem a ver com o efêmero, é com o efêmero como afirmação da vida” (p. 250).

A imagem da lua na lagoa não se resumiria, assim, a um pensamento, a uma memória; talvez a “saudade pura” fosse um choque entre a desatenção da vida urbana para com a necessidade humana de contar histórias. Em “A espécie fabuladora” (L&PM, Porto Alegre, 2010), a escritora canadense Nancy Huston aborda o contar de histórias como técnica de sobrevivência, para que possamos dar conta do real, utilizando a capacidade que temos de moldá-lo, interpretá-lo e inventá-lo.

Huston defende que não haveria na humanidade maiores razões do que outras espécies para estar no planeta Terra. A nossa diferença dos demais seres vivos estaria na consciência que temos de que vamos morrer e que, portanto, nos resta cumprir uma trajetória desde o nascimento até a morte. “Nenhum agrupamento humano foi descoberto circulando tranquilamente no real (…) sem religião, sem tabu, sem ritual, sem genealogia, sem conto de fadas, sem magia, sem histórias, sem recorrer ao imaginário, ou seja, sem ficções” (HUSTON, p.26).

Construir enredos é uma das características indissociáveis da nossa existência e motivo de satisfação do nosso cérebro fabulador. O que Chico César chamou de “saudade pura”, ao deparar com uma bela lagoa espelhando a luz da lua no meio do agito da cidade, é a reativação da poética da vida, como experiência indissociável às pessoas sensíveis em sua fabricação de sentido.

Fora de uma percepção aguçada de quem transita ao seu redor, não há como uma lagoa, mesmo enluarada, ser motivo de saudade. Sem alguém que olhe para ela, a lagoa não tem história, não vira música. Neste caso, para ser saudade e, principalmente, saudade pura, ela teve que conversar silenciosamente com o discurso interno de Chico César e com seus pensamentos reais.

A “saudade pura” é um pedido de carona da utopia numa encruzilhada social; o sentimento do artista ante o vazio do esgotamento estético da hipermodernidade. Quando a arte vagueia fora de si, vagueia na agonia emancipadora de uma sociedade tão interconectada quanto dividida. E isso produz uma sensação de suspense, como se retardasse momentaneamente a nossa narrativa.

Para virar história, virar música, a circunstância vivida por Chico César saiu da leitura do fato para a leitura da metáfora. É o que Canclini traduz como a arte em situação de iminência, com seu vínculo direto com o real. Dessa dinâmica de uma forma remeter à outra, me veio a pergunta: Chico chamou a lagoa ou a lagoa chamou o Chico? Sobre essa correspondência de olhares, Canclini cita seu conterrâneo Jorge Luís Borges (1899 – 1986) para lembrar que certos crepúsculos e certos lugares querem nos dizer algo e que a literatura e a arte dão ressonância a essas vozes que procedem dos mais diversos lugares.

Desse modo, a “saudade pura” de Chico César pode ser uma revelação. Com apoio de Huston e de Canclini, passei a imaginá-la como uma inquietude do poeta em sua necessidade de fabulação. “As obras artísticas não surgem como ilustrações de pensamentos, senão para observar seus dispositivos conceituais e formais que alteram os modos de tornar visíveis as perguntas” (CANCLINI, p. 63). E essa música responde que a saudade é um farol.